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A política de ‘Robin Hood’ invertida e as consequências para o trânsito

Entrevista com o superintendente da Associação Nacional de Transportes Públicos

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Há algum tempo que os gargalos no trânsito já alcançaram as vias das médias cidades.  Essa falta de solução para congestionamentos levou a Associação Nacional de Transportes Públicos, a ANTP, a desenvolver a tese do “não transporte” como uma possível solução. A medida consiste em levar a estrutura para perto de quem a necessita, evitando deslocamentos motorizados. Paradoxal ao progresso? Entenda melhor o cenário nesta entrevista exclusiva que o superintendente da associação, Marcos Pimentel Bicalho*, concedeu à Perkons:

Perkons Em algumas cidades, o planejamento urbano contempla evitar deslocamentos de carro, oferecendo serviços nos próprios bairros, transformando-os em minicidades. Essa é uma tendência? Pode ser considerada uma evolução?

Marcos Bicalho – Não creio que seja exatamente uma tendência, mas uma resposta que surja naturalmente nas grandes cidades. Há mais de uma década, a Comissão de Circulação e Urbanismo da ANTP formulou o que ficou conhecida como a tese do “não transporte”. A ideia era (é) exatamente trabalhar por meio de planejamento urbano, com descentralização das atividades geradoras de viagens (empregos e serviços) como forma de redução da necessidade de viagens motorizadas.
O conceito é correto e, mais do que nunca, válido. Mas se contrapõe à tradicional organização das cidades brasileiras cuja política de mobilidade urbana está fundada no transporte individual. Infelizmente, apesar dos evidentes e crescentes ônus que esta política tem para a cidade e as pessoas, o Brasil continua a se desenvolver olhando (desejando) o automóvel e, mais recentemente, a motocicleta. A tendência a que você se refere parece-me mais uma resposta do mercado, em função do custo e da perda de tempo crescentes com os congestionamentos e com as longas viagens, do que uma política urbana.

PK – Qual a parcela de responsabilidade do aumento da frota de veículos no país?

MB – O aumento da frota é consequência das políticas nos três níveis de governo: enquanto o Governo Federal subsidia a gasolina, que movimenta o transporte individual (comparativamente com o diesel, que move o transporte coletivo), e a produção industrial de carros e motos; os governos estaduais e municipais, salvo raríssimas exceções, investem pesadamente em infraestrutura viária para o transporte individual. Em função desta política ‘Robin Hood invertida’, é mais barato em muitas situações usar o transporte individual e não o coletivo. Segundo estudos da ANTP, em muitas cidades, para uma viagem média de 7 km, o desembolso com uso da moto ou do automóvel é menor do que uma viagem por transporte coletivo.
Além disso, com má qualidade, altas tarifas e falta de prioridade no trânsito, só usa o transporte coletivo quem não pode pagar para realizar o sonho do carro (ou da moto) próprio.

PK – Qual o seu conselho para as médias cidades que têm a oportunidade de planejar adequadamente essas divisões?

MB – Há um paradoxo: nas cidades grandes, onde a falência do modelo de mobilidade urbana centrado no transporte individual é perceptível, mudanças são difíceis e caras; nas cidades médias, onde as soluções são mais viáveis economicamente, não há uma percepção do problema e, consequentemente, da necessidade de inversão da matriz. Não apenas os governos, mas a sociedade, a mídia, principalmente nos setores dominantes, optam pela manutenção de seus privilégios no curto prazo.
A solução proposta pela ANTP é inverter a lógica tradicional, priorizando os investimentos e a gestão da circulação para os meios de transporte coletivo e para os meios de transporte não motorizados (transporte cicloviário e andar a pé). Até pouco tempo, pensava que medidas positivas de estímulo ao uso do transporte coletivo, por exemplo, seriam suficientes. Hoje penso que isto não basta, e essas medidas precisam ser acompanhadas de ações de restrição ao uso do transporte individual, seja pela restrição (rodízio), pela taxação (pedágio urbano) ou por medidas indiretas, como a redução da oferta de estacionamentos em áreas congestionadas.

PK – O que funciona bem no Brasil em termos de tecnologia de trânsito?

MB – As cidades brasileiras têm muita qualidade e experiência na administração e na operação do tráfego. Pressionadas para encontrar soluções (arranjar espaço para colocar mais carros nas ruas), a engenharia de tráfego no Brasil desenvolveu know-how e ferramentas para enfrentar esses problemas. Talvez, em vão, já que se tenta resolver os problemas de trânsito pela oferta de maior espaço viário para os automóveis.
A tecnologia é uma ferramenta útil. Avanços importantes de eficiência podem ser obtidos com melhorias no controle semafórico, com a implantação de Centros de Controle Operacional (envolvendo a gestão do trânsito, da segurança pública e do enfrentamento de emergências), com o uso de painéis de mensagem variáveis. Porém tendem a ser pouco eficazes se não usadas para alterar a matriz de divisão modal e promover políticas de mobilidade sustentáveis. Alguns bons exemplos já existem, como o controle eletrônico de velocidade, ou o uso de câmeras para controle das faixas exclusivas de ônibus; outros são potenciais, como o uso de GPS para viabilizar a instituição do pedágio urbano.
É importante que a tecnologia seja vista como uma ferramenta a serviço de uma correta política de mobilidade urbana para não correr o risco de virar um mero fetiche de modernidade, ou ainda um simples negócio, conveniente para fabricantes e prestadores de serviço.

Perkons – Recente estudo do Ipea mostrou que 43% dos motoristas enfrentam congestionamentos todos os dias – só a transformação dos bairros em pequenas regionais da cidade pode ajudar a resolver?

MB – A descentralização é positiva, mas uma das riquezas da vida urbana é a diversidade de oportunidade. Assim, em uma cidade como São Paulo, o acesso a uma ampla gama de opções – de trabalho ou de lazer – é um dos seus atrativos, portanto, é natural que as pessoas queiram mais mobilidade, e não restrições a ela.
É fundamental distinguir o direito fundamental à mobilidade (ir e vir) do privilégio injustificável de fazê-lo de carro. As pessoas devem ter opções de atender suas necessidades próximas às suas residências, mas precisam também contar com um transporte coletivo de qualidade e com custo acessível para poderem realizar viagens longas, ir aonde quiserem ou necessitarem.

Perkons – A ANTP, há algum tempo, tratou da tese do teletrabalho. Qual a ideia deste conceito?

MB – As possibilidades de trabalho remoto, com apoio de tecnologias de informática e de comunicação, tendem a se ampliar, mas sequer arranharão a nossa forma de organização social que produz e atrai viagens. Mobilidade e acessibilidade são atributos positivos e, de certa forma, traduzem as oportunidades de acesso que as pessoas têm aos atrativos da vida urbana (emprego, saúde, educação, lazer, cultura, etc…). Elevados índices de mobilidade (número de viagens diárias por habitante) estão diretamente associados à renda. Isto é, quanto maior a renda de uma pessoa, maior a sua mobilidade.
É verdade que essas mesmas viagens podem acontecer de forma regionalizada, com menor custo social e individual. Também é verdade que algumas necessidades de deslocamento possam ser supridas por esta mudança dada pelo teletrabalho. No entanto, seria ilusório achar que as pessoas apenas saem de casa por necessidades objetivas; a rua e seus derivados (no caso todos os espaços públicos, inclusive o transporte coletivo) são uma atração à parte, um espaço importante de sociabilização.

PK – Após a criação dessas superestruturas para os bairros, qual o próximo passo para melhorar o trânsito?

MB – Mais transporte coletivo, mais espaço para pedestres e bicicletas, menos automóveis e motocicletas.

* Marcos Pimentel Bicalho é consultor em trânsito, arquiteto urbanista graduado pela Universidade de São Paulo e mestre em Administração Pública pela Fundação Getúlio Vargas.

Clique aqui e confira também a matéria “As minicidades dentro dos grandes centros urbanos”.

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