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Comendo poeira. Breve história de como a poupança atropelou a segurança no trânsito

por Eduardo Biavati*

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No dia 22  de dezembro de 2010, 189o da Independência e 122o da República, o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinou um Decreto instituindo a Estratégia Nacional de Educação Financeira (ENEF) com a finalidade de:

“promover a educação financeira e previdenciária e contribuir para o fortalecimento da cidadania, a eficiência e solidez do sistema financeiro nacional e a tomada de decisões conscientes por parte dos consumidores”.

É claro que ninguém notou o ato derradeiro porque estávamos preocupados demais com festas, comes e bebes e a renovação de ilusões natalinas de harmonia e paz entre os homens. Além disso, todo mundo sabe que finzinho de mandato é sempre assim: assina-se qualquer coisa, concede-se quaisquer bondades, agradam-se gregos e troianos, num velho jogo de apagar da luzes e alguma vantagem futura.
O ato presidencial guarda, no entanto, alta significação ideológica e política que não deveria passar em branco. Ao menos entenderíamos melhor porque o Brasil não moveu uma palha sequer na direção da Década de Ações pela Segurança no Trânsito – o grande movimento internacional capitaneado pela ONU, do qual não fazemos parte ainda, exceto como nação periférica e alienada de si.

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A “Estratégia Nacional de Educação Financeira” define uma série de iniciativas pedagógicas voltadas aos jovens alunos do Ensino Médio e Fundamental, bem como aos adultos, com o objetivo de erradicar o analfabetismo financeiro no país
Nada de ensinar a colocar moeda no porquinho! Na sala de aula, as crianças e os jovens serão orientados a dimensionar o valor de bens desejados (lanches, brinquedos, roupas, lazer etc.), aprendendo a formar um julgamento racional e ponderado do custo e da necessidade das coisas. O cidadão responsável é aquele, afinal, que assume as consequências do que faz com seu dinheiro. A longo prazo, espera-se que a sociedade brasileira desenvolva, assim, habilidades financeiras que ajudem na identificação dos riscos e oportunidades envolvidos em cada decisão econômica, tanto no âmbito do orçamento doméstico, como nos hábitos de poupança ou nas escolhas de seguros, financiamentos e até nos planos da futura aposentadoria.
É mais do que evidente para os ideólogos da novíssima “Estratégia Nacional” que adultos que foram orientados ao longo da vida ao bom uso do dinheiro fazem escolhas mais equilibradas, gastam menos com juros e, portanto, consomem com mais qualidade. Isso deve ser verdade, porque pesquisas da Comissão de Valores Mobiliários indicam que 82% dos consumidores brasileiros não conhecem os juros que pagam quando tomam empréstimos! 3 em cada 10 paga o mínimo da fatura do cartão de crédito! Muito pior: 87% não poupa um único centavo!!! Donde se conclui que o brasileiro é mesmo um A-N-A-L-F-A-B-E-T-O financeiro.
Será possível que até nisso copiaremos a lambança e descontrole de norte-americanos e europeus que gastaram tudo o que tinham e o que não tinham, comprando imóveis, bens, carros e tudo mais que viam pela frente? Agora que a América quebrou, todo mundo perdeu emprego e as hipotecas estão sendo executadas a rodo, ficam lá eles, chorando as pitangas! Isso para não falar daqueles analfabetos que derramaram dinheiro gordo nas mãos de um trambiqueiro-mór de nome Maddoff, dentre eles:

Fairfield Greenwich Advisors, 7,5 bilhões de dólares
Tremont Capital Management, 3,3 bilhões de dólares
Banco Santander, 2,87 bilhões de dólares
Bank Medici, 2,1 bilhões de dólares
Ascot Partners, 1,8 bilhão de dólares
Access International Advisors,1,4 bilhão de dólares
Fortis-ABN AMRO, 1,35 bilhão de dólares
Union Bancaire Privée, 1 bilhão de dólares
HSBC, 1 bilhão de dólares
Como se pode ver, um bando de banqueiros e financistas muuuito analfabetos…

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O analfabetismo financeiro dos brasileiros tornou-se problema para o Sistema Financeiro Nacional e, agora, objeto de uma Política Pública específica por razões muito claras: o crescimento da economia brasileira nos últimos anos é indissociável de uma transformação estrutural do financiamento da produção e do consumo. O volume de crédito na economia expandiu enormemente na última década, partindo de um patamar de R$ 380 bilhões em 2002 para mais de R$ 1,6 trilhão de reais no final de 2010. Novas formas de financiamento, como o crédito consignado e a ampla oferta de cartões de crédito, além de taxas médias de juros declinando e prazos maiores, viabilizaram o aumento do número de tomadores de crédito de 8,5 milhões de pessoas em 2004 para mais de 25 milhões agora.
A bancarização da sociedade brasileira é mesmo um fenômeno extraordinário com amplas repercussões econômicas e sociais. Ao final de 2009, tínhamos mais de 81 milhões de contas-correntes ativas no Brasil, um aumento de 69% em comparação aos 48 milhões no início da década passada. De certo modo, o brasileiro torna-se cidadão e sujeito de políticas de Estado no guichê das agências bancárias espalhadas pelo território nacional: é por lá que passam os ganhos da aposentadoria e a renda essencial do bolsa-família, por exemplo. Conta em banco, cadastro, cartão, crédito – tudo isso é, também, uma forma de inclusão, de afirmação de pertencimento à economia formal – um vínculo quase inalcançável para milhões de trabalhadores há 10 anos ou mais.
A valiosíssima contribuição dos bancos à sociedade brasileira é inegável. Talvez por isso não estranhemos o lucros estratosféricos dos líderes do setor ao longo da última década. Enquanto aqueles bancos analfabetos de Nova Iorque evaporavam na crise de 2008 em diante, por aqui tudo seguiu sólido como nunca antes na história. O gigante Itaú-Unibanco terminou 2010, por exemplo, com um lucro de R$ 13,3 bilhões – 32,3% superior a 2009!! Foi o maior resultado anual da história de todo o setor financeiro nacional, turbinado por uma expansão de 18% das operações de crédito. Banco do Brasil e Bradesco não ficaram muito atrás, alcançando R$ 11,7 bilhões e R$ 10,02 bilhões de lucro, respectivamente, no último ano. Eles merecem!!, e só nos resta agradecer. Como é justo esse mundo!
O problema é que nem a expansão do crédito nem a capacidade de pagamento das pessoas e das famílias são infinitos. Vai-que alguma coisa escape ao controle? Vai-que a “classe média emergente”, novata no campo financeiro movediço, se estrepe em uma espiral de juros impagáveis? Vai-que esses milhões de analfabetos financeiros se tornem inadimplentes… todos ao mesmo tempo? Isso seria um risco sistêmico gravíssimo para a economia nacional. Não se pode brincar com isso, e é bom lembrar que 1/5 quinto dos alunos que terminam o ensino médio não sabe em matemática nem o que se espera para um estudante do 5º ano (ou 4ª série) do fundamental, ou seja realizar operações básicas como soma e divisão, de acordo os resultados de 2009 da Prova Brasil e do SAEB.
Nada como prevenir o pior: já que mau devedor pode se tornar um vírus destrutivo perigosíssimo (veja só o que os americanos-caloteiros fizeram com o pobre do Lehman Brothers!), é preciso atacar logo pelo front surrado da educação, formando o cidadão a tomar decisões racionais, equilibradas e responsáveis desde cedo. Está mais do que na hora, portanto, de abandonar álgebra e trigonometria (que mal têm uso na vida real), e começar a ensinar conteúdos mais simples, tais como matemática financeira e juros compostos! Educação é a salvação!

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A essência da “Estratégia Nacional de Educação Financeira” é contribuir para a solidez do sistema financeiro nacional e isso explica os sócios de peso que a sustentam:

Banco Central do Brasil (BC),
Comissão de Valores Mobiliários (CVM),
Superintendência Nacional de Previdência Complementar (Previc),
Superintendência de Seguros Privados (Susep),
Federação Brasileira de Bancos (Febraban),
Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais (Anbima),
Bolsa de Mercadorias & Futuros e Bolsa de Valores de São Paulo (BM&FBovespa).
É mole ou quer mais? O empreendimento conta ainda com apoio financeiro e técnico do Banco Mundial e é diretamente incentivado pela OECD (organismo internacional do qual o Brasil nem é membro, mas que vem fomentando a inclusão da educação financeira em mais de 60 países, alguns dos quais, aliás, estão praticamente falidos, como a Grécia e a Irlanda).

Faltava mesmo apenas um Decreto da Presidência da República como reconhecimento máximo de um trabalho que vem sendo elaborado desde 2007 e que, aliás,  já foi implementado em 410 escolas da rede pública dos estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Tocantins, Distrito Federal e do Ceará em 2010. A educação financeira não é uma promessa: é pra já!; ela já passou da fase de projeto-piloto!
Era essa, pois, a surpresa natalina do Decreto presidencial: ganhamos de presente um novo tema transversal no Ensino Médio e no Ensino Fundamental que fará parte do currículo das 200 mil escolas da rede pública a partir de 2012!!! Quanta generosidade! Que visão!
Falta apenas uma peça nesse enredo: como implementar o novo tema transversal sem envolver o Ministério da Educação? Ora, e quem disse que esqueceram dele? O MEC é sócio majoritário e avalista essencial do novo tema transversal da educação financeira desde o princípio. O programa foi desenvolvido sob orientação de e em parceria direta com o MEC, que promete, aliás, capacitar os professores para a nova missão educacional.
Mas, espere um minuto: não tem sido essa exatamente a demanda da educação para o trânsito, desde a promulgação do Código de Trânsito Brasileiro em 1997? Está lá prevista, no artigo 76, a cooperação indispensável e evidente do Ministério da Educação:

“A educação para o trânsito será promovida na pré-escola e nas escolas de 1o, 2o e 3o graus, por meio de planejamento e ações coordenadas entre os órgãos e entidades do Sistema Nacional de Trânsito e de Educação, da União (…)”

Nada disso, entretanto, saiu do papel. O Estado Brasileiro não dispõe até hoje de um política pública federal sobre o assunto. Depois de vagar 13 anos por corredores de Brasília, com uma lei debaixo do braço, a educação de trânsito poderia se perguntar: o que a educação financeira tem que eu não tenho?!!

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As respostas chegaram todas juntas, um mês antes da assinatura do Decreto-Presente, graças ao Dr. Carlos Artexes Simões (Diretor de concepções e orientações curriculares para Educação Básica do Ministério da Educação). Ele apresentou ao público do III Seminário DENATRAN de Educação e Segurança no Trânsito as razões pelas quais esse Ministério NUNCA colaborou para a implementação da educação para o trânsito em qualquer nível educacional e muito menos nacionalmente:
O marco legal (Código de Trânsito Brasileiro, uma Lei Federal vale lembrar) é insuficiente para a apropriação da Educação para o Transito nos sistemas de ensino de ensino e unidades escolares;
O Ministério da Educação não tem poder de determinar a qualquer gestor estadual, municipal, e nem mesmo ao gestor de uma unidade educacional, a inclusão de um tema transversal;
A educação brasileira está saturada de temas transversais que competem em cada unidade escolar por recursos humanos e tempo limitados;
A formulação dos objetivos da educação para o trânsito não está articulada com nenhum dos múltiplos atores institucionais – trabalhadores da educação, estudantes e Conselhos de Educação – que compõem os Sistemas de Ensino brasileiros;
As Diretrizes Nacionais de Educação para o Trânsito (Portaria no. 147, do DENATRAN) e as Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica, ambas publicadas em 2009, simplesmente não dialogam entre si. 

Que descascada geral! Trocando em miúdos, o Dr. Carlos quis dizer: “vocês querem educação para o trânsito? Comecem do ZERO! Minhas senhoras e meus senhores, VÃO À LUTA!!” E todos ficaram mudos porque o sabão tinha fundamento: o que temos oficialmente no Brasil por “Educação para o Trânsito” é fruto de um monólogo, no máximo o produto da inteligência de uma ou poucas cabeças. As “Diretrizes Nacionais” do DENATRAN nunca foram nacionais em sentido algum e nem de longe representam uma Política Pública Federal sobre o assunto.
É claro que ninguém no Ministério da Educação dedicou meio minuto de atenção a uma proposta vazia de objetivos que se pretendia a salvação da educação nacional (o tal “resgate dos valores pela cidadania no trânsito”), mas não passa de um amontoado de moralismos que não se sustentam nem pedagógica nem sociologicamente. Enquanto se gastavam neurônios em como ser “legal no trânsito”, formulavam-se em Brasília e pelo país afora um conjunto de novas políticas públicas de segurança e para a juventude, marcadamente intersetoriais e multiinstitucionais. Tivessem acompanhado ao menos os estudos demográficos e sociais do IPEA e do IBGE, os formuladores oficiais da “Educação para o Trânsito” descobririam que estavam falando sozinhos e atirando no alvo errado. Quem sabe até teriam descoberto que ao esvaziar a “Educação para o Trânsito” de qualquer reflexão sobre a violência e sobre a juventude, eles aniquiliram o contato com o mundo concreto.
O representante do Ministério da Educação desnudou com muita precisão as razões do isolamento da “Educação para o Trânsito” desde 1997. Sempre me pareceu muito estranha a enorme resistência do setor de educação à… educação para o trânsito. Agora, sim, fica tudo bem explicado.
Entretanto, não é incrível que a inclusão da educação financeira como novo tema transversal da Educação Brasileira tenha se tornado uma Política Nacional, apoiada e patrocinada pelo Ministério da Educação, no curtíssimo período de 3 anos? Onde foram parar todos aqueles obstáculos complexos e o papel limitadíssimo do MEC?

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Não conclua que essa breve história narre simplesmente a vitória do TER sobre o SER – esse é o escapismo fácil de todo moralista de plantão. Ao invés disso, considere que TODAS as instituições representativas do Sistema Financeiro Nacional e importantes instituições internacionais se UNIRAM em torno de uma proposta concreta, fundamentada conceitual e metodologicamente e validada empiricamente. Ao contrário, a Educação para o Trânsito nos últimos 13 ano não passou de uma idéia genérica, cheia de boa fé e um punhado de dogmas pedagógicos (pobre Paulo Freire! coitado do Piaget!), que não uniu nem mesmo os órgãos gestores do tal Sistema Nacional de Trânsito. 
Cada detalhe do Decreto Presidencial revela, então, que a estratégia institucional, os conceitos e a prática da educação para o trânsito estiveram profundamente equivocadas na década que passou e que deveríamos resgatá-las do amadorismo político e da inteligência limitada em que se afogaram. 
Por último, toda escolha é uma eleição de prioridade, sem dúvida – a da hora é ensinar nossos jovens a navegar na águas abundantes e traiçoeiras do crédito bancário. A Presidência da República decidiu pela fascinante educação financeira e os mistérios da poupança; em outro momento poderá escolher a educação para o trânsito e a segurança, porque de pouco adianta, afinal, ensinar o jovem a poupar e usar crédito e perdê-lo depois, atropelado no meio da rua.

*Eduardo Biavati
Mestre em sociologia (UnB) e especialista em segurança no trânsito. É membro titular da Câmara Temática de Educação e Cidadania do Conselho Nacional de Trânsito (CONTRAN), para o biênio 2010-2011. De 1993 a 2004,  foi Coordenador Nacional do Programa de Prevenção de Acidentes de Trânsito da Rede SARAH de Hospitais de Reabilitação.

Originalmente publicado no Blog do Biavatti, no dia 28/02/2011 [biavati.wordpress.com].

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