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Trânsito: Choque de realidade

por Roberto DaMatta*

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Terminado o reino fantasioso do carnaval, somos obrigados a lidar com o real, que chega como um tiro nas costas. Tsunami no Japão, ao lado de um vergonhoso recorde de mortos nos acidentes de trânsito
Algo equivalente a uma catástrofe com um dado terrível e que escondemos de nós mesmos: esse estilo agressivo de dirigir que rotineiramente mata mais do que epidemias e guerras e com o qual temos uma relação de absurda tolerância.
Escrevi sobre o assunto muitas vezes e reuni minhas reflexões num livro recém-publicado: Fé em Deus e Pé na Tábua – Ou Como e Por Que o Trânsito Enlouquece no Brasil. Nele, eu argumento que os acidentes são o resultado de uma combinação explosiva: um aumento gigantesco de veículos, todos poderosos; estradas lastimáveis em matéria de sinalização e asfaltamento; e eis o último e mais importante dado da equação: nossa alergia à igualdade que obriga a esperar a vez e a aguardar (ou “pegar”, como falamos significativamente no Brasil) numa fila. A onipotência do nosso lado de meninos mimados pela família ou pelo cargo (que nos torna isentos de cumprir a lei) numa sociedade onde cada qual tem o seu lugar (e o nosso, obviamente, não é numa imensa e igualitária fila) é brutalmente desmantelado pelo trânsito. Esse organizador do espaço público que, sem nenhum respeito ou consideração (vejam que coisa!), diz que todos os carros (e com eles os seus motoristas – nós – imaginem!) são iguais perante as rodovias e os s    inais!
Esse choque entre cabeças que se pensam em termos de mais ou menos prestígio, num ambiente absolutamente igualitário, cria um sentimento de intolerância, de tal intensidade que acaba promovendo a ultrapassagem agressiva e a qualquer preço. Ele torna invisíveis os outros veículos e nos convence de que a nossa importância social dispensa a igualdade da espera que experimentamos como sinal de inferioridade. Não suportando seguir a lei que inferioriza (pois não foi feita para nós), reafirmamos nossa superioridade ultrapassando. O resultado é esse triste número de mortes (e de acidentes), revelador de um país que imita todo mundo, mas não prepara a sua sociedade para essas imitações. Pois de nada vale uma estrada à Estados Unidos ou Alemanha se não temos ianques bem comportados (que babacas!) e alemães (nazistas que, vejam só, param em todos os sinais!) para nelas circular! A causa do acidente tem a ver, sim, com falta de educação. Mas é preciso distinguir o tipo de educação que está faltando, pois para com os     nossos comparsas de partido e de amizade, somos ultra bem-educados. No trânsito, porém, o que falta e o que estamos a dever, é uma educação para a igualdade – para o outro: o anônimo que está do nosso lado! Essa é a educação que, como acentuo no livro, precisamos discutir, politizar e ensinar. Nosso problema é que em todas as instâncias, somos produtores inveterados de desigualdade e com ela temos um denso caso de amor. Se ela não existe, não hesitamos em recriá-la. E o Estado à brasileira está aí para isso. Quando, então, nos vemos numa situação de relativa ou obrigatória igualdade, nosso coração, ansioso de hierarquia, nos obriga a diferenciar e a desigualar. Na vida e na política, o desobedecer (e o enganar e mentir) para “subir” ou “enricar”, é trivial; mas, no trânsito, pegamos um alto preço pelos nossos desvios. Pois diferentemente do mundo público, onde a desigualdade que enriquece jamais é descoberta, no carro em velocidade o rompimento com a regra cobra imediatamente seu preço na forma do aci    dente fatal.
É, sugiro neste livrinho, esse encontro negativo entre a igualdade necessária das ruas e a desigualdade inscrita nas casas e nos corações que nos torna propensos ao risco e aos surtos de agressividade, conforme testemunhamos na cena absurda de um sujeito atropelando ciclistas que caíam como moscas e eram, de fato, moscas, do ponto de vista do motorista embriagado por sua própria importância social, somente porque estava de carro. Carro que no Brasil ainda é coisa de rico e de autoridade. Que aristocratiza, como faz prova todo cargo público que o contém como sinecura. Como, ademais, obedecer, se ter poder ainda é, no Brasil, desobedecer e ser imune às leis?
Ao lado disso, eis que a família Roriz volta à cena reiterando esses aspectos. Pois o que é o “grande” político nacional (guardando, claro, as devidas e honrosas exceções que vão ficando cada vez mais excepcionais!) senão esse trapezista que pula de um governo para outro e é louvado pela malandragem felina com a qual sobrevive às suas notáveis ultrapassagens morais e, depois de um salto mortal triplo, cai no colo dos governantes?
O problema do trânsito é que ele obriga a tomar providências reais e imediatas. Como a moeda, a dengue, o crime e a escolaridade, mas um tanto diferentemente dessas mazelas, ele tem muito mais pressa. Um sujeito pode fazer um discurso sem entender das regras de gramática ou comer de boca cheia; mas ninguém pode trafegar nessas cidades e rodovias vergonhosamente sem manutenção, sem policiais e cheias de crateras, dirigindo como um político: burlando regras e usando o sabe com quem está falando ou o jeitinho. Pois se assim faz, a punição encarnada no acidente chega de modo imediato. Em contraste com o mundo político (movido a interesses e mensalões), o desastre surge com a indiferença típica da realidade, ceifando vidas. O trânsito faz o que a política esconde: torna o outro real e desperta compaixão. Faz com o que aquele sujeito invisível, sempre imaginado como inferior, fique igual a nós!

*Roberto DaMatta
Antropólogo

Originalmente publicado no site Abetran em 16/03/2011.

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