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O pé e suas frutas

por Eduardo Biavati*

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O Sistema Nacional de Trânsito é um sistema, certo? É natural que tudo nele funcione de modo idêntico e previsível, como se um sistema fosse: a gestão municipal do trânsito, nos aspectos que lhe compete, é moldada pela gestão estadual de trânsito, que é moldada, nos aspectos que lhe compete, pela gestão federal do trânsito. Frutas nunca caem longe do pé, diz o ditado.

A racionalidade sistêmica se revela, por exemplo, na dependência, cada vez mais profunda, do monitoramento eletrônico na fiscalização do trânsito brasileiro. Decorrem desse fato um perfil praticamente idêntico das principais infrações registradas nas diversas capitais e cidades do país e o forte crescimento do volume de autuações, e, por conseguinte, da arrecadação de multas de trânsito, ao longo da primeira década do Século XXI.

Em 2012, assim como em anos anteriores, tanto na cidade do Rio de Janeiro como na de São Paulo, mais de 50% das infrações foram registradas por equipamentos eletrônicos, tais como “pardais” e lombadas, que flagram principalmente o excesso de velocidade (a rainha de todas as infrações), o avanço de sinal vermelho, o fechamento de cruzamentos, e a invasão de corredores de ônibus. Em São Paulo, radares e câmeras ocupam-se bastante, também, de flagrar a transgressão da regra do rodízio semanal.

Em contraste com sistemas tecnológicos cada vez mais sofisticados e integrados, que funcionam ininterrupta e instantaneamente, o flagrante de outras infrações – as centenas de outras previstas pelo Código de Trânsito – são obviamente muito menos frequentes porque dependem da ação humana direta de fiscalização e, por conseguinte, estão sujeitas a muitas restrições igualmente humanas, além de políticas: desde limites da jornada de trabalho à crônica escassez de pessoal. A tarefa de fiscalizar a olho nu o trânsito na rua é quase um ato heroico que, aliás, tem que se dividir com outras atribuições da operação do trânsito. Talvez por isso (é uma hipótese), dirigir falando ao celular ou não usar cinto de segurança, por exemplo, mal somem 2% do total de autuações cariocas ou paulistanas e, ainda assim, é muito mais do que os flagrantes do desrespeito à travessia do pedestre ou do estacionamento em cima da faixa de pedestre, ou da ameaça à segurança do ciclista, que não passam de resíduos ridículos do esforço de fiscalização.

Causa estranheza, mas faz muito sentido, que o orçamento paulistano para 2013, e possivelmente também o de muitas outras cidades Brasil afora, projete aumento da arrecadação de multas de trânsito, como já vem acontecendo há vários anos. A Prefeitura de São Paulo espera um  acréscimo de R$ 93 milhões na arrecadação em relação a 2012, mesmo levando-se em conta que houve queda do número de multas relativas às principais infrações em 2012: redução de 10,8% nas autuações por uso de celular, menos 10,7% por avanço de sinal, menos 3,9% por excesso de velocidade.

Serão sinais alvissareiros de que os paulistanos estão mais conscientes no trânsito? Se forem, não estarão sozinhos: no Distrito Federal foram registradas 8,6% menos infrações em 2012 do que no ano anterior. Os números nunca dizem nada, porém. Se houve menos infrações, é plausível que isso reflita MENOR fiscalização, ao invés de MAIOR consciência e obediência do cidadão? É plausível que os condutores tenham se tornado muito mais vigilantes quanto aos locais fixos dos equipamentos?

Por que um orçamento municipal deveria prever o aumento da arrecadação com multas de trânsito, mesmo quando os cidadãos parecem dar soluços de maior respeito às regras? Primeiramente, porque nada indica que a quantidade de radares e câmeras em operação será menor em 2013 do que foi em 2012. A expansão da rede de monitoramento em mais pontos do sistema viário representa necessariamente maior fiscalização das condutas do cidadão, portanto, maior chance de flagrar a transgressão das regras. Em segundo lugar, porque é mais certo ainda que somos pouquíssimo fiscalizados no Brasil: basta observar a parcela insignificante de autuações por falar ao celular, algo que qualquer caolho flagraria às centenas em poucas horas em qualquer esquina. Não há uma “indústria da multa”, como sugeriu mais uma vez um editorial do jornal Estado de São Paulo há alguns dias (13 de janeiro de 2013); muito pelo contrário, há apenas um vazio, a omissão, a ausência, a timidez e a insuficiência do Estado na regulação das condutas do cidadão nas vias públicas e, sobretudo, nas rodovias do país – as estradas estaduais e federais são um território livre de radares, um deus-dará da velocidade.

Quanto mais fiscalizados os “usuários” do trânsito (denominação tecnocrata do cidadão, condutor ou não, quando “em trânsito”), maior será a arrecadação – é uma questão aritmética. Os orçamentos municipais de 2013 podem contar folgadamente com o aumento da receita das multas de trânsito e, ao final do ano, descobrirão que todas as previsões de arrecadação ainda serão menores do que o apurado. Muito bom para os municípios, bom também para o financiamento do sistema: para a esfera federal, seguem, sem o menor trabalho de manter um único radar, 5% do total arrecadado com multas pelos municípios e estados, para uso “exclusivo” em “educação para o trânsito” – ou não… a depender das necessidades do Tesouro Nacional.

Os recordes sucessivos e a extraordinária arrecadação municipal de multas em 2012 (R$ 174,4 milhões no Rio, R$ 832 milhões em São Paulo) são indicadores inquestionáveis de que nossos gestores estão investindo firme e cada vez mais na fiscalização de trânsito. Há quem afirme que os recordes acontecem porque a frota de veículos não para de aumentar, desmerecendo o investimento dos órgãos de trânsito, mas essa é uma correlação fraquíssima ou completamente espúria. Ao invés de atribuir ao aumento da frota o aumento das infrações, poderíamos pensar que mais multas denunciam uma deterioração da já usualmente péssima formação de nossos condutores habilitados (mas, habilitados para que mesmo?) e de outras deformações familiares e educacionais. Mais veículos nas vias não geram mais infrações de trânsito; a afirmação correta é que mais  condutores transgressores geram mais infrações que, entretanto, só podem ser reconhecidas como tais pelo aparato de fiscalização. Portanto, quanto maior a fiscalização, maior o flagrante das transgressões e maior a repressão de condutas de risco, gerando-se maior arrecadação e, assim, mais recursos para o investimento na ampliação do poder fiscalização. O transgressor patrocina, desse modo, diretamente o combate à transgressão, em nome (isso é uma hipótese) da segurança de todos os demais não-transgressores (quem?).

Há muita gente convicta de que a repressão dos transgressores é uma forma de educação pública, servindo de garantia de um convívio mais seguro e mais harmônico entre os demais “usuários”, não-transgressores (???), do sistema.Teoricamente, a repressão sistemática, rigorosa e geral da transgressão tenderia a eliminar da circulação os transgressores, seja suspendendo-lhes quantas vezes for necessário a autorização de condução de um veículo automotor – e assim sua posição transitória de poder – seja forçando-lhes à conscientização da conduta correta a seguir, ainda que pela pressão econômica (mas alguém realmente acredita nisso, ou tudo não passa de algumas contas extras no fim do mês, como uma espécie de taxa de lixo?). Desse ponto de vista, o investimento em fiscalização é um investimento na segurança da circulação no sistema. Confere?

Pouco confere, infelizmente, ou muito menos do que centenas de milhões de reais fariam supor. A começar pelo fato de que a INsegurança no trânsito não é uma decorrência simples de comportamentos transgressores, como acreditam piamente os moralistas e pedagogos de plantão. Num mundo certinho de sujeitos obedientes cujos comportamentos espelham as normas com máxima perfeição, ainda descobriríamos desgostosamente que a INsegurança não é mera expressão da personalidade dos sujeitos, ou de alguma patologia psicológica, a INsegurança está inscrita NO sistema de circulação e na convivência de risco entre máquinas e homens. É sempre mais confortável, porém, enxergar a transgressão no comportamento dos “usuários”, nunca nas escolhas políticas dos gestores do trânsito municipais ou estaduais. Em segundo lugar, a montanha de reais das multas não passa de uma (des)ilusão contábil: a arrecadação não é DO órgão de trânsito; a arrecadação de multas de trânsito é uma fonte de receita do Município. Para o órgão de trânsito, não costuma retornar nem metade do que o esforço de fiscalização produz financeiramente a cada ano. É um paradoxo que uma das principais fontes de receita do tesouro municipal no Brasil atualmente mantenha-se em estado permanente de petição de miséria, mas a verdade é que a arrecadação das multas de trânsito patrocina qualquer despesa da administração pública que assim decidir o gestor da cidade. O mesmo vale, aliás, para o uso da parcela do IPVA (50%) que cabe ao município (ao contrário do que todo motorista pensa, IPVA não é um imposto para se ter ruas asfaltadas e semáforos funcionando).

É uma questão de sobrevivência institucional e econômica, portanto, que os órgãos gestores de trânsito invistam o que houver na expansão da fiscalização e apostem que isso, de quebra, “conscientize” os cidadãos (transgressores e não-transgressores) de algum modo, mesmo entre aspas, ainda que pelo temor da repressão, já que sobra bem pouco para qualquer outra forma de assegurar esse resultado, seja por meio de campanhas públicas massivas ou de ações de educação. A “educação para o trânsito” é um subproduto insignificante da transgressão das regras de trânsito no Brasil, como vem sendo noticiado há vários anos pela imprensa, sem grande repercussão, contudo, nem emoção: em 2012, a Folha de São Paulo noticiava que apenas 0,05% (!!! ou seja: nada) havia sido gasto pelo DETRAN/SP nos três anos anteriores (entre 2008 e 2011) em prevenção de acidentes e educação; em 2012, o Correio Braziliense comunicava aos leitores que o DETRAN/DF não havia executado sequer 1% com prevenção e educação dos cidadãos em 2011, ainda assim bem mais do que o 0,2% gasto em 2010; e agora, em 2013, O Globo constata que a Prefeitura do Rio de Janeiro não usou 0,3% para a mesma finalidade ao longo de 2012.

Tudo indica, portanto, que não estamos diante de episódios isolados de uma gestão municipal ou estadual – a hipertrofia da fiscalização do trânsito é uma necessidade estruturante e sistêmica da gestão do trânsito no Brasil atual, tanto quanto é sistêmica a DESPRIORIDADE vergonhosa do investimento público em campanhas e ações de educação/prevenção.

Que essa hipertrofia, um dia, resulte, também, em menos mortos, menos feridos e maior consciência dos cidadãos, é uma esperança, uma aposta, uma crença, mas não constitui uma política de segurança no trânsito sustentável, nem inteligente. De fato, a fruta não cai longe do pé.

*Eduardo Biavati
Mestre em sociologia (UnB) e especialista em segurança no trânsito
biavati.wordpress.com

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