Para medir a civilidade de uma cidade, veja suas calçadas; de um país, o número de pedestres mortos.
IMPOSSÍVEL NÃO ficar perplexo com o vídeo de um discurso de formatura que está circulando nas redes sociais.
Na cerimônia de formatura da faculdade de administração da ESPM no ano passado, o orador falou sobre um colega de turma que morreu porque, na volta de uma festa, perdeu o controle do automóvel. A partir do episódio, ele construiu imagens sobre os mistérios da vida e a importância da cautela e da responsabilidade. Finalizou o vídeo associando-o a suas carreiras e ao que teriam de enfrentar para dirigir uma empresa.
O orador era Vitor Gurman, morto há duas semanas, na Vila Madalena, por um automóvel que tinha 26 multas, dez das quais por excesso de velocidade. Ele voltava a pé para casa justamente porque não tinha ido de carro a uma festa, prevendo que iria beber.
Essa tragédia com jeito de ficção envolve mais uma coincidência: ocorre às vésperas do início da ofensiva, na cidade de São Paulo, para multar motoristas que não respeitam os pedestres.
Acidentes desse tipo no Brasil são rotina. Apenas nesta semana, em pleno século 21, começa na cidade de São Paulo a ofensiva para multar motoristas que não obedecem, por exemplo, à rudimentar faixa de segurança.
Na cidade de São Paulo, no semestre passado, morreram atropeladas duas pessoas por dia, em média. Acidentados no trânsito foram, nesse período, 72 casos diários.
Para ver como uma expressiva maioria desses acidentes seria facilmente evitável, basta conhecer o resultado de um programa experimental realizado desde maio em São Paulo. Numa preparação para as multas que começarão (ou deveriam começar) a ser aplicadas amanhã, realizou-se uma ação educativa em 38 cruzamentos das regiões centrais. Resultado: o número de atropelamentos caiu 69%.
Bastou, portanto, uma leve sensação de punição para menos gente ser atropelada.
Há uma cadeia de tolerância por trás do massacre. Considera-se muita coisa normal. Quando são publicadas as estatísticas de crime, mesmo nós, da imprensa, quase não damos destaque ao que ocorre no trânsito. As manchetes recentes foram para o aumento do latrocínio (47 casos) no semestre, o que equivale a 10% do número de pessoas que morreram atropeladas.
Considera-se normal a publicidade de automóveis que estimula o culto da alta velocidade. Associa-se, assim, o carro (e sua potência) a sucesso, sexo, poder -e por aí vai.
Celebridades não se constrangem (e quase não são constrangidas) por emprestarem sua imagem à venda de bebida alcoólica. Provocaram muito mais debate os comentários de Sandy sobre sexo anal do que o fato de ela emprestar sua imagem de boa moça, responsável, para promover uma marca de cerveja.
Não preciso aqui explicar a relação entre o álcool e os acidentes de trânsito, que mataram gente como Vitor ou seu amigo da faculdade.
Anunciam-se leis mais duras para coibir a mistura de álcool com direção, mas, com o tempo, elas deixam de funcionar.
No Brasil, achamos normal haver calçadas que não servem para pedestres: estreitas, esburacadas, muitas vezes usadas para carros estacionarem. Vemos bairros com milionários empreendimentos imobiliários em que não há preocupação com a construção de uma calçada.
Se quiser medir a taxa de civilidade de uma cidade, veja o tamanho de sua calçada. E, se quiser medir a cidadania de um país, pode usar como indicador o número de pedestres mortos.
O que ocorre em nosso trânsito são casos tão absurdos que, daqui a não muito tempo, quando olharmos para trás, não vamos sequer entender como os toleramos. É como vemos hoje a mulher não ter direito de votar, crianças serem obrigadas a trabalhar, negros serem escravos ou alguém fumar no avião.
O impacto da morte de Vitor, gerando repercussão entre jovens formadores de opinião -neste domingo, seu nome vai estar estampado na camisa do Corinthians-, certamente terá um efeito pedagógico na criação de uma comunidade mais responsável.
PS- Um dos maiores prazeres que tenho de morar nos Estados Unidos é poder flanar pela cidade com o direito de ficar distraído. Os motoristas não se comportam melhor lá porque são mais bonzinhos do que os nossos motoristas. É que eles sabem o tamanho do problema que terão pela frente se matarem ou ferirem alguém. Existe até quem queira punir os pedestres por não respeitarem o sinal verde dos motoristas.
*Gilberto Dimenstein
gdimen@uol.com.br
Originalmente publicado na Folha de S. Paulo em 07/08/2011.
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