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Ciclistas em rota de colisão

por Eduardo Biavati*

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No dia 14 de janeiro de 2009, uma ciclista, Márcia Regina, morreu atropelada na avenida Paulista.
Ciclista experiente, ela ocupava o lugar correto na via, o mais à direita possível, quase rente ao meio-fio, seguindo na direção do fluxo dos veículos. Não foi o bastante, porém, para escapar de um ônibus que trafegava justamente naquela faixa mais à direita. Ela foi derrubada e terminou esmagada pela roda traseira do coletivo. 
No dia 02 de março de 2012, três anos depois de Márcia Regina, outra ciclista, Juliana Dias, morreu praticamente no mesmo local da primeira, na mesma avenida, também massacrada por um ônibus coletivo.
Para as autoridades municipais paulistanas, a nova tragédia foi como um soluço estatístico: a CET (Companhia de Engenharia de Tráfego) tratou de tirar o corpo fora rapidamente e lembrou orgulhosa que São Paulo nunca foi tão SEGURA para os ciclistas. Aos números: em 2010, 49 mortes, em 2009 foram 61 mortes; e 93 ciclistas perderam a vida no já distante 2006. Donde se conclui que… o que mesmo? Nada. Ao menos nada que saibam dizer os gestores da segurança viária na cidade. Morreram menos ciclistas porque choveu muito nos últimos verões? Não me digam que morreram menos ciclistas porque há maior gentileza nas ruas paulistanas. Terá sido porque há mais ciclistas zanzando na cidade? Mais gente pedalando reduz a mortalidade da gente pedalando? Ou será que é tudo reflexo da promoção tão mercantil e simpática quanto inócua das ciclofaixas de lazer dos fins de semana e feriados?
A tragédia inaceitável expõe mais uma vez a omissão gigantesca do Poder Público, em São Paulo e em quase todo o país, em cuidar dos cidadãos mais vulneráveis. Pedestres e ciclistas vivem em rota de colisão – e com eles vai junto muito de nossa civilidade. Cada um que tomba grita que vivemos em cidades hostis, desiguais e desumanas.
Márcia e Juliana eram uma ativistas no uso da bicicleta como forma de melhorar o trânsito e a qualidade do ar da cidade. Nada mais correto nesses tempos de debate sobre a sustentabilidade das megacidades do Século XXI. 
O automóvel e, mais ainda, a motocicleta produzem a INsustentabilidade dessas cidades – a hegemonia do transporte motorizado individual nos levará a um colapso da mobilidade e da qualidade de vida urbana. É o que já experimentam os paulistanos (que julgam que vivem o cotidiano do inferno, mas ainda não imaginam o que está por vir, quando varias dezenas de milhões de habitantes estufarem os limites da cidade, emendando-a definitivamente em uma gigantesca região metropolitana).
É certo que a hegemonia dos carros deverá ser vencida, a despeito das conveniências do poder e da indeterminação dos governos. A questao é saber se promover o uso da bicicleta é mesmo uma saída ou apenas uma cortina de fumaça de quem não quer nem sabe como enfrentar o problema.
O Brasil só fabrica menos bicicletas do que a China e a Índia. Somos ainda uma nação de ciclistas. Estima-se que nossa frota de bicicletas some 60 milhões de unidades atualmente. Quando se viaja para dentro do Brasil, na direção dos pequenos centros urbanos, pelo interior do Ceará, do Mato Grosso ou de Goiás, é fácil redescobrir que a bicicleta foi o verdadeiro meio de transporte popular por muitas décadas. Essa é, no entanto, uma cultura minguante, que vem sendo substituida rapidamente pelas motocicletas. A transição em massa para as duas rodas motorizadas é  um fenômeno indiscutível do aumento da renda da população, como já apontaram várias vezes o IPEA e o IBGE. Resultado: em Mossoró (RN), 80% da frota atualmente é de motocicletas! e esse não é  um número para se comemorar: ele representa o abandono de uma história e de uma cultura (que abrange, ainda, a inutilização do velho burrinho na lida rural, largados hoje no meio da caatiga) e a chegada de um novo padrão de acidentalidade de alto custo humano e social.
Resgatar essa cultura será cada vez mais difícil nas pequenas cidades; nas maiores, ela desapareceu há  tempos, subsistindo como fato nas franjas pobres do centro urbano. Em 2007, foram realizadas cerca de 300 mil viagens de bicicleta por dia na região metropolitana de São Paulo, 71% delas por motivo de trabalho, segundo a pesquisa Origem-Destino, realizada pelo Metrô paulistano. 
Não deixa de surpreender que a bicicleta – o velho e bom veículo do trabalhador, ainda cumpra sua função. Em uma cidade como São Paulo, no entanto, a bicicleta corresponde a apenas 1% do total de viagens dos habitantes, de acordo com o Sistema de Informações da Mobilidade Urbana 2007, produzido pela ANTP (Associação Nacional de Transportes Públicos).  Quando falamos em “promover” o uso da bicicleta, portanto, estamos nos referindo a um meio de transporte absolutamente insignificante em São Paulo (assim como, aliás, em praticamente todos os centros urbanos com mais de 1 milhão de habitantes no país).
É possível que as viagens de bicicleta sejam assim tão inexpressivas justamente porque seu uso nunca foi incentivado por ninguém. Eis mais um motivo justo para promover o uso desse veículo limpo. A migração de motoristas de carros e motos para o pedal das bikes, manteria, assim, o predomínio do transporte individual (que ninguém quer, convenientemente, questionar), mas pelo menos poupar-se-iam o meio ambiente e a saúde coletiva. Entretanto, qual seria o impacto real dessa mudança? 
Digamos que conseguissemos elevar o número de viagens de bicicleta em 10 vezes o que se tem hoje – uma meta ambiciosa. Decuplicar o número de viagens de bicicleta, por outro lado, pressupõe que será agregado às bicicletas um contingente de “novos ciclistas”. De onde eles viriam? Quem goza do privilégio de morar perto do trabalho em São Paulo seria um ótimo candidato. A despeito do calor, do suor e de um certo desgaste, a bicicleta cobriria com tranquilidade o pequeno trajeto, permitindo o abandono do carro na garagem das residências.
Porém, se a distância for curta realmente, não seria melhor caminhar? Se é para lutar pelo meio-ambiente e pela saúde coletiva, muito melhor seria promover o pedestrianismo – pouparíamos todo o processo industrial de fabriação e embalagem de milhões de bicicletas e nos uniríamos pela melhoria de calçadas melhores em toda parte, travessias bem sinalizadas, tempos semafóricos priorizando os pedestres e assim por diante! Muito mais gente se beneficiaria dessa bandeira (vale lembrar: 30% de todas as viagens em São Paulo ainda se fazem a pé, por mais incrível que soe aos ouvidos do cidadão motorizado).
Trocar o carro pela bicicleta seria, de qualquer forma, um ganho. O difícil é acreditar que um número expressivo aderisse à nova onda por vontade própria. Dizem que as consciências hoje moram nos bolsos e nas carteiras. Talvez se o custo do uso do carro se tornasse muito maior… Como está fora de cogitação a proibição total da propriedade do carro, a eventual restrição econômica ao uso do automóvel  – o pedágio urbano – poderia arrebanhar um grupo adicional para a turma dos ciclistas ou simplesmente tornar-se um ônus a mais (como já há o IPVA, os impostos compulsórios sobre o combustível, o preço dos estacionamentos particulares e tantos outros). Paga-se; incorpora-se ao Custo-São-Paulo (uma das cidades mais caras do mundo, diga-se de passagem).
Quem não usufrui dessa condição econômica, porém, teria uma escolha a fazer: a consciência de preservação da qualidade de vida e do meio ambiente, proporcionada pela bicicleta, ou o cálculo individual do maior conforto, maior rapidez e menor gasto de energia física, proporcionado pelo uso transporte coletivo? Não é plausível que alguém prefira pedalar 40km/dia da zona sul da cidade até o centro e de volta para casa, se isso puder ser feito de ônibus e metrô, utilizando-se um único bilhete. O incentivo ao uso da bicicleta, um meio de transporte individual, pode desembocar, assim, em um resultado imprevisto, que é a demanda por transporte público!
Vamos imaginar, porém, por um instante, que o cidadão preferisse, sim, realizar suas viagens pela cidade de bicicleta, mesmo que isso significasse pedalar 40km/dia, todos os dias. Por onde ele pedalaria? Nas vias públicas, é claro. Não restaria ao “novo ciclista” outra opção senão partilhar a rua com os demais usuários – isto é, todos os veículos motorizados, já que os pedestres têm seu próprio espaço de circulação. A pista de rolamento é, afinal, destinada aos veículos que se locomovem sobre rodas. Pois bem, foi justamente o exercício desse direito legítimo, naquele meio metro de asfalto da Paulista, que levou à morte de Márcia e Juliana. E isso nos traz a uma questão crucial: é possível partilhar a via?
A idéia de “partilhar” a via é uma daquelas que soam tão bem! Uma unanimidade mundial – os franceses conclamam: “partager la route!”
Que bonito! A idéia aponta para um mundo melhor; quem poderia discordar? Partilhar o espaço público de modo justo e equânime é, supostamente,  um direito constitutivo da cidadania – todos os cidadãos têm o direito inalienável de ir e vir nos espaços abertos, supostamente, à circulação. Perante a Constituição somos todos iguais. Nossa humanidade comum nos iguala. Partilhar é, antes de tudo, um ato de convivência social, um dar e receber fraternal que permite a existência cotidiana de nossa sociedade.
Na vida real, porém, nada se passa dessa maneira. As calçadas, por exemplo, não estão abertas à circulação de todos, nem sequer do ciclista: elas são um espaço exclusivo dos pedestres. A ponte Rio-Niterói existe exclusivamente para o trânsito de veículos automotores; ciclistas e pedestres estão proibidos de utilizar esse espaço. Os corredores exclusivos dos ônibus, não estão abertos à circulação nem de ciclistas, nem de motociclistas. A organização real do espaço viário revela o que o bonito conceito de partilhamento esconde: NO TRÂNSITO, NÃO SOMOS IGUAIS
Os diferentes modos de locomoção e, sobretudo, a potência de velocidade de deslocamento de cada um, introduzem a desigualdade no uso do espaço público e, portanto, determinam condições de segurança muito díspares para cada um dos usuários. É possível garantir segurança quando misturamos na mesma via veículos cuja massa e velocidade são tão superiores às da bicicleta? E o que dizer dos pedestres? Por que os pedestres não compartilham o mesmo espaço com caminhões, carros, motos, ônibus e bicicletas?  Não é mera coincidência que a urbanização das cidades seja, também, um processo de construção de espaços exclusivos para os pedestres – as calçadas isolaram o pedestre do fluxo dos demais veículos porque não há outra maneira de garantir-lhes segurança no trânsito (ainda assim, vejam só, cerca de 14% dos atropelamentos de pedestres em São Paulo acontecem nas… calçadas!).
Promover o uso da bicicleta sem oferecer um padrão de segurança viária para esse veículo, em uma cidade cujo sistema viário encontra-se além da saturação, é uma política irresponsável. E de que modo se pode garantir segurança máxima para o ciclista? Segregando-o dos demais veículos, em vias próprias e exclusivas – a ciclovia. 
A ciclovia é a prova de que não é possível garantir segurança a todos os usuários da via ao mesmo tempo. VIVA A CICLOVIA! Berlim tem 753 km de ciclovias; Paris, 437 km; Bogotá, 340 km; Rio de Janeiro, 200 km, ao longo de sua bela orla; e São Paulo tem… 76 km, somando ciclovias e ciclofaixas, dos quais apenas 80% servem apenas para o lazer, funcionando nos finais de semana e feriado e especializadas em ligar os grandes parques públicos, sempre encravados em bairros da classe média alta da cidade. Não vale a pena comentar, certo?
Não é sempre viável, entretanto, sair por aí fazendo ciclovias. Nem mesmo quando elas emplacam como prioridades da política local. Aliás, é questionável que elas sejam a única ou melhor solução em todas as situações. Ao invés delas, temos muitas outras opções.
Podemos, por exemplo, começar impondo uma obediência estrita das regras do trânsito para TODOS os usuários – o que seria, isso sim, uma revolução digna do nome. O cotidiano do trânsito é um exercício de transgressão das regras em nossa sociedade – ninguem gosta de admitir, mas sabotamos deliberadamente cada linha do código de trânsito. TODOS sabotamos: pedestres, motoristas, ciclistas, caminhoneiros e, é claro, ciclistas, que ainda acreditam que devem transitar no contrafluxo, que os pedestres atrapalham a biciceta nas calçadas, além de ignorarem solenemente capacetes e luvas. Mas para que obedecer regras, se a fiscalizacao é pífia e a impunidade certa?
Muito mais ousado seria revermos os limites de velocidade nos centros urbanos, como fizeram os europeus e norte-americanos ao longo da década de 80. Se a proposição do pedágio urbano provoca medo em muita gente, impor uma revisão das velocidades máximas é um horror inominável, quase um atestado de óbito para qualquer gestor público nesse país. As pessoas gostam de citar as ruas francesas e inglesas, como exemplos de inclusão, ao inves da segregação – lá todos “convivem”, “partilham”. O que pouca gente sabe e ninguém quer revelar é a “mágica” que viabiliza essa convivência “civilizada” de ciclistas e motoristas: a regulação e fiscalização severas das velocidade nas ruas da cidade.
A velocidade muda TUDO. A 30 km/h você restitui ao condutor do carro a possibilidade real de VER o ciclista, não tanto ao condutor do ônibus ou dos caminhões, cujos pontos cegos são imensos e insolúveis. De qualquer maneira,  equalizam-se as disparidades mencionadas acima, a partir da escala mais humana da bicicleta e asseguram-se condições de segurança melhores para os mais frágeis. Tudo de bom, certo?  De quebra, transforma-se o padrão de acidentalidade no trânsito da cidade. VIVA A BAIXA VELOCIDADE! Em Londres, as velocidades variam entre 30 e 50 km/h. Queremos partilhar as vias por aqui? Lutemos, então, pela revisão dos limites de velocidade: na avenida paulista, 50km/h, no máximo; nas vias locais 20 ou menos, e assim por diante. Vamos encarar?
Infelizmente, essa revolução não está no horizonte, a fiscalização das condutas é insignificante e a revisão dos limites de velocidade ainda está no campo do impensável.

*Eduardo Biavati
Mestre em sociologia (UnB) e especialista em segurança no trânsito. É membro titular da Câmara Temática de Educação e Cidadania do Conselho Nacional de Trânsito (CONTRAN), para o biênio 2010-2011. De 1993 a 2004, foi Coordenador Nacional do Programa de Prevenção de Acidentes de Trânsito da Rede SARAH de Hospitais de Reabilitação.

http://biavati.wordpress.com

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