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Qualidade de vida e congestionamentos, por Paulo Tarso Resende

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    O sentimento de quem vive nas grandes cidades brasileiras é o de um jogador numa partida cujo resultado foi a derrota do planejamento e a vitória do caos. Basta ver a malha urbana de tráfego, associada às emissões de poluentes e ao estresse das intermináveis filas, que dá contorno à vida urbana. Dada a incapacidade de encontrar soluções para esse ambiente caótico, o desenvolvimento que se vislumbra para os próximos anos será caracterizado, infelizmente, pelo drama dos grandes congestionamentos e de seus reflexos econômicos, além da redução da qualidade de vida e do aumento da poluição. A medida desse futuro está no crescimento médio de 15% ao ano no tempo gasto por motoristas nos congestionamentos nas grandes cidades brasileiras.
    E quando o assunto é mobilidade urbana, São Paulo é o placar de um jogo em que a eficiência sofreu uma goleada histórica. O nível de exposição dos paulistanos aos congestionamentos é de tal forma crítico que deve ser evitado pelas demais regiões metropolitanas brasileiras, já que as consequências vão muito além do tempo perdido e da visão dantesca da lentidão veicular. Isso porque a dinâmica de utilização do espaço urbano é influenciada diretamente por um composto de valores comuns a grupos de indivíduos. Por exemplo, centros de consumo e lazer se formam justamente porque apresentam benefícios reconhecidos por grandes conjuntos de usuários da malha urbana.
    Consolida-se, então, a escala necessária para a sustentação de uma miríade de ilhas de produção e consumo, que dinamicamente moldam o conteúdo da matriz de origem e de destino dos movimentos microrregionais. Surge daí o conceito de mobilidade urbana que conecta as vias de trânsito aos centros de oferta e demanda, criando um ambiente que reflete o modo como o conjunto de movimentos se acomoda diante dos aglomerados de atividades socioeconômicas e em rede com os núcleos residenciais. A cidade passa a funcionar como um corpo constituído de artérias e vasos que se comunicam em resposta às atividades que demandam movimento.
    Neste contexto, se tais movimentos são desordenados e negativos à vida urbana, como é o caso da maioria das grandes cidades do Brasil, consequentemente, a ocupação para a criação de centros geradores de negócios ou de facilidades urbanas se dá de forma não-controlada. O resultado são áreas públicas deterioradas, ocupadas somente em determinados dias da semana, por conseguinte se transformando em locais de prostituição e consumo de drogas nos fins de semana, já que não têm outra função senão aquela de corredor de trânsito.
    Os exemplos mais marcantes estão nos hipercentros de São Paulo, Recife e Rio de Janeiro. São áreas com acesso tão difícil e com volumes de tráfego tão intensos durante a semana de trabalho que desencorajam as pessoas de usá-las para outros fins senão aqueles compulsórios, como o trabalho, serviços hospitalares, comerciais, entre outros. Ou seja, são áreas ocupadas por obrigação, e não por opção. Esse comportamento desequilibra a função social da mobilidade urbana, deteriorando importantes ativos urbanos.
    Quando uma cidade como São Paulo atinge certos níveis de lentidão no trânsito, a luta para fazer com que congestionamentos desapareçam se torna estéril, restando apenas possibilidades de conviver com essa lentidão de forma inovadora, para que o resultado seja útil para a mobilidade urbana no sentido mais amplo. Se observarmos cidades como Paris ou Nova York, os congestionamentos fazem parte da vida das pessoas. No entanto, existem alternativas de transporte coletivo que substituem a opção pelo carro. Em Los Angeles e Chicago, as áreas de consumo se expandem por meio de uma política de uso e ocupação do solo que incentiva os investimentos no entorno de corredores de trânsito menos carregados. A revitalização dos centros urbanos de Berlim e de Londres leva em consideração uma agenda de eventos que não se veem sujeitos a grandes sacrifícios de deslocamento que poderiam desencorajar os usuários.
    Os exemplos se multiplicam ao redor do mundo, como uma demonstração global ao Brasil de que lentidão no trânsito não precisa ser sinônimo de caos irremediável, mas de oportunidade para gestões inteligentes e comprometidas com a qualidade de vida. Tal afirmação parte do princípio de que o volume de entradas de veículos no sistema é, e continuará sendo, significativamente maior do que o conjunto de projetos para ampliar a capacidade das vias urbanas. A engenharia tem um limite e, em algumas localidades, esse limite se aproxima. Quando atingido, somente ações restritivas e punitivas amenizam o desastre, como o pedágio urbano de Londres ou as ruas interditadas para veículos em Tóquio.
    O que não se pode aceitar é a retórica das “soluções inéditas“ ou de obras emergenciais que visam apenas aos ganhos eleitorais. Não será com a construção de uma determinada obra monumental que os congestionamentos desaparecerão, mas é fundamental que eles sejam incorporados ao contexto da mobilidade urbana, reduzindo-os a níveis aceitáveis e controlados. Nesse contexto, o planejamento integrado deve ser priorizado em relação à administração fracionada das questões metropolitanas. É fundamental que o Brasil passe por um processo de amadurecimento da gestão do transporte urbano a partir de parâmetros fundamentais do planejamento sistêmico. Assim, projetos com resultados de curto, de médio e de longo prazos, de acordo com as necessidades de mobilidade da população e a melhoria na qualidade vida nos grandes centros urbanos, devem substituir as ações mirabolantes de efeito imediato.


Paulo Tarso Resende
Professor e coordenador do Núcleo CCR de Infraestrutura e Logística da Fundação Dom Cabral


Originalmente publicado no jornal O Estado de S. Paulo em 08 de setembro de 2010.

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