Por Paulo Afonso Santos *
Exame toxicológico em serviços de habilitação de condutores
Por Paulo Afonso Santos *
Desde 2 de março deste ano, todo motorista que pretende se habilitar ou renovar a habilitação para as categorias C, D ou E deve se submeter ao exame toxicológico de larga janela de detecção – ao qual vou me referir como ET. Para quem não está acompanhando de perto o assunto, explico como funciona: o motorista deve ir a um posto de coleta dos laboratórios credenciados pelo DENATRAN, doar amostras de seus cabelos ou pelos para análise e, após receber o resultado do ET, deve levar o laudo para avaliação do médico perito examinador de trânsito. O laboratório que realizou o ET deve registrar o resultado do exame em um site disponibilizado pelo DENATRAN, e o médico perito deve fazer o mesmo no sistema do DETRAN, com base no laudo apresentado pelo candidato. Sem o registro das informações do ET o DENATRAN não autoriza o cadastro do exame médico na base nacional de condutores, ficando impedido o prosseguimento do serviço de habilitação e, consequentemente, a emissão da CNH.
A vinda do ET para o Brasil foi anunciada oficialmente através da Resolução CONTRAN nº 460, de 2013, que contemplava em seu anexo os procedimentos atinentes à realização do exame do fio do cabelo. Após ter sido alvejada por críticas de entidades técnicas como a Associação Brasileira de Medicina do Tráfego – ABRAMET e a Sociedade Brasileira de Toxicologia – SBTOX, o CONTRAN decidiu substituí-la pela Resolução nº 517/2015, e posteriormente desistiu de normatizar tecnicamente o procedimento, passando a incluir, como anexo da normativa atual – a Resolução nº 583/2016 – uma Portaria do Ministério do Trabalho e da Previdência Social - MTPS, que explica como o ET deve ser feito. Durante os ensaios do CONTRAN foi publicada a Lei 13.103/2015, que enxertou o artigo 148-A no CTB, reificando o ET como etapa dos serviços de habilitação para as categorias C, D e E.
O ET reduzirá o número de acidentes fatais no trânsito?
Objeto de calorosos debates, a medida divide opiniões, rivalizando aqueles que acreditam que o ET trará mais segurança para os motoristas, contra os que questionam sua eficácia e sua relação com a segurança no trânsito. É sabido que o trânsito brasileiro é um dos mais violentos do mundo, e que uma porção significativa dos acidentes com vítimas fatais tem participação de veículos de grande porte. Sabe-se também que muitos motoristas profissionais, pressionados por empregadores e clientes, fazem uso de anfetaminas, os chamados “rebites”, para manter a vigília prolongada por mais tempo, de modo a percorrer mais quilômetros antes de parar para descansar. Entretanto, incluir o ET no processo de habilitação de condutores é atitude inédita – já que não existe, no mundo, iniciativa semelhante – e não encontra comprovação científica de eficácia no combate à violência no trânsito. Assim, ao implantar a exigência do ET, o Brasil faz uma grande aposta, bancada pelos motoristas que são obrigados a pagar caro pelo exame se quiserem obter ou renovar as categorias profissionais. Existe, inclusive, a intenção de ampliar o experimento para todas as categorias da CNH: é o que propõe o deputado Aguinaldo Ribeiro, através do Projeto de Lei nº 2.823/2011, que está na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, a qual possui, como Vice-Presidente, o próprio autor do PL.
Apesar dos argumentos apresentados pelos que são favoráveis ao ET, até o momento sua relação com a segurança no trânsito é apenas hipotética – já que o exame não tem condições de avaliar se o motorista dirige sob o efeito de drogas. Para isto já existe uma ferramenta chamada “drogômetro”, que está em uso em diversos países como os Estados Unidos e a Austrália, e passa por testes aqui no Rio Grande do Sul. O ET é capaz apenas de avaliar se o cidadão fez uso de determinadas drogas nos últimos 90 dias – ou mais tempo, já que a janela mínima é de três meses, mas o laboratório pode considerar janelas maiores – e, no formato especificado na Portaria nº 116/2015 do MTPS, não informa a quantidade e a frequência do uso destas drogas, não servindo para diferenciar quem é usuário de quem é dependente de drogas. Além disto, entre as substâncias testadas pelo ET não está o álcool, considerada, entre todas as drogas, a mais nociva no ambiente do trânsito.
O ET serviria como uma medida de combate ao uso ilícito de drogas?
Se não há evidências de que o ET contribuirá para a prevenção de acidentes, poderíamos então supor que serviria como uma medida de combate ao uso de drogas por parte de alguns brasileiros, especificamente os motoristas profissionais de veículos de grande porte.
Para testarmos esta hipótese teríamos que verificar se o ET encontra guarida na Lei nº 11.343/2006, que institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas – SISNAD. Em suma a lei prevê o desenvolvimento de atividades (1) de prevenção do uso indevido de drogas e (2) de atenção e de reinserção social de usuários ou dependentes de drogas, através da adoção de conceitos objetivos e de fundamentação científica, evitando-se preconceitos e a estigmatização das pessoas.
As estratégias de reinserção devem ser diferentes para os usuários, os dependentes de drogas e os respectivos familiares, devendo ser consideradas as peculiaridades socioculturais. Tais atividades se aplicariam, portanto, aos motoristas que se tornaram usuários ou dependentes de anfetaminas ou outro tipo de droga.
Entretanto, como vimos, o ET, nos moldes estabelecidos, não quantifica o uso, não avalia a frequência e não especifica quando a droga foi utilizada. Desta forma, são tratados da mesma maneira os que consumiram apenas uma vez, os usuários e os dependentes de drogas. Ademais, o ET é procedimento excludente – já que o resultado positivo no exame implica na suspensão do direito de dirigir por 90 dias –, o que vai na contracorrente da proposta de reinserção social das políticas públicas sobre drogas, podendo implicar, inclusive, na demissão de motoristas.
Devemos considerar também que o uso de substâncias capazes de alterar o estado da consciência é hábito antigo e há séculos debatido nos campos das ciências humanas, jurídicas e da saúde. Há milhares de anos as sociedades humanas fazem uso de psicotrópicos para fins recreativos, religiosos e medicinais. Como a alteração no juízo crítico pode comprometer a saúde e a capacidade da pessoa de conviver pacificamente com os outros, as sociedades, através de códigos, disciplinam o uso destas substâncias, elegendo algumas como lícitas e outras como proibidas. A análise sobre o uso de drogas merece, portanto, um olhar multidisciplinar; nesta linha, a composição do Conselho Nacional Antidrogas – CONAD, conforme o Decreto nº 5.912/2006, a quem compete exercer orientação normativa sobre as atividades previstas para o SISNAD, contempla profissionais da área da medicina, psicologia, antropologia, direito, assistência social, enfermagem, educação e artes, entre outros. Parece, portanto, que se o ET fosse uma medida de combate ao uso de drogas, deveria passar pelo crivo do CONAD e ser especificado por resolução deste Conselho.
Então qual o fundamento para a exigência do ET?
Permanecem em aberto muitos questionamentos técnicos a respeito da exigência do ET para motoristas. Entretanto, uma afirmação é possível fazer, sem risco de errar: o ET custa caro e não possui relação cientificamente comprovada com a segurança no trânsito.
*Paulo Afonso Santos
Analista – Psicólogo
DETRAN/RS
Desde 2 de março deste ano, todo motorista que pretende se habilitar ou renovar a habilitação para as categorias C, D ou E deve se submeter ao exame toxicológico de larga janela de detecção – ao qual vou me referir como ET. Para quem não está acompanhando de perto o assunto, explico como funciona: o motorista deve ir a um posto de coleta dos laboratórios credenciados pelo DENATRAN, doar amostras de seus cabelos ou pelos para análise e, após receber o resultado do ET, deve levar o laudo para avaliação do médico perito examinador de trânsito. O laboratório que realizou o ET deve registrar o resultado do exame em um site disponibilizado pelo DENATRAN, e o médico perito deve fazer o mesmo no sistema do DETRAN, com base no laudo apresentado pelo candidato. Sem o registro das informações do ET o DENATRAN não autoriza o cadastro do exame médico na base nacional de condutores, ficando impedido o prosseguimento do serviço de habilitação e, consequentemente, a emissão da CNH.
A vinda do ET para o Brasil foi anunciada oficialmente através da Resolução CONTRAN nº 460, de 2013, que contemplava em seu anexo os procedimentos atinentes à realização do exame do fio do cabelo. Após ter sido alvejada por críticas de entidades técnicas como a Associação Brasileira de Medicina do Tráfego – ABRAMET e a Sociedade Brasileira de Toxicologia – SBTOX, o CONTRAN decidiu substituí-la pela Resolução nº 517/2015, e posteriormente desistiu de normatizar tecnicamente o procedimento, passando a incluir, como anexo da normativa atual – a Resolução nº 583/2016 – uma Portaria do Ministério do Trabalho e da Previdência Social – MTPS, que explica como o ET deve ser feito. Durante os ensaios do CONTRAN foi publicada a Lei 13.103/2015, que enxertou o artigo 148-A no CTB, reificando o ET como etapa dos serviços de habilitação para as categorias C, D e E.
O ET reduzirá o número de acidentes fatais no trânsito?
Objeto de calorosos debates, a medida divide opiniões, rivalizando aqueles que acreditam que o ET trará mais segurança para os motoristas, contra os que questionam sua eficácia e sua relação com a segurança no trânsito. É sabido que o trânsito brasileiro é um dos mais violentos do mundo, e que uma porção significativa dos acidentes com vítimas fatais tem participação de veículos de grande porte. Sabe-se também que muitos motoristas profissionais, pressionados por empregadores e clientes, fazem uso de anfetaminas, os chamados “rebites”, para manter a vigília prolongada por mais tempo, de modo a percorrer mais quilômetros antes de parar para descansar. Entretanto, incluir o ET no processo de habilitação de condutores é atitude inédita – já que não existe, no mundo, iniciativa semelhante – e não encontra comprovação científica de eficácia no combate à violência no trânsito. Assim, ao implantar a exigência do ET, o Brasil faz uma grande aposta, bancada pelos motoristas que são obrigados a pagar caro pelo exame se quiserem obter ou renovar as categorias profissionais. Existe, inclusive, a intenção de ampliar o experimento para todas as categorias da CNH: é o que propõe o deputado Aguinaldo Ribeiro, através do Projeto de Lei nº 2.823/2011, que está na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, a qual possui, como Vice-Presidente, o próprio autor do PL.
Apesar dos argumentos apresentados pelos que são favoráveis ao ET, até o momento sua relação com a segurança no trânsito é apenas hipotética – já que o exame não tem condições de avaliar se o motorista dirige sob o efeito de drogas. Para isto já existe uma ferramenta chamada “drogômetro”, que está em uso em diversos países como os Estados Unidos e a Austrália, e passa por testes aqui no Rio Grande do Sul. O ET é capaz apenas de avaliar se o cidadão fez uso de determinadas drogas nos últimos 90 dias – ou mais tempo, já que a janela mínima é de três meses, mas o laboratório pode considerar janelas maiores – e, no formato especificado na Portaria nº 116/2015 do MTPS, não informa a quantidade e a frequência do uso destas drogas, não servindo para diferenciar quem é usuário de quem é dependente de drogas. Além disto, entre as substâncias testadas pelo ET não está o álcool, considerada, entre todas as drogas, a mais nociva no ambiente do trânsito.
O ET serviria como uma medida de combate ao uso ilícito de drogas?
Se não há evidências de que o ET contribuirá para a prevenção de acidentes, poderíamos então supor que serviria como uma medida de combate ao uso de drogas por parte de alguns brasileiros, especificamente os motoristas profissionais de veículos de grande porte.
Para testarmos esta hipótese teríamos que verificar se o ET encontra guarida na Lei nº 11.343/2006, que institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas – SISNAD. Em suma a lei prevê o desenvolvimento de atividades (1) de prevenção do uso indevido de drogas e (2) de atenção e de reinserção social de usuários ou dependentes de drogas, através da adoção de conceitos objetivos e de fundamentação científica, evitando-se preconceitos e a estigmatização das pessoas.
As estratégias de reinserção devem ser diferentes para os usuários, os dependentes de drogas e os respectivos familiares, devendo ser consideradas as peculiaridades socioculturais. Tais atividades se aplicariam, portanto, aos motoristas que se tornaram usuários ou dependentes de anfetaminas ou outro tipo de droga.
Entretanto, como vimos, o ET, nos moldes estabelecidos, não quantifica o uso, não avalia a frequência e não especifica quando a droga foi utilizada. Desta forma, são tratados da mesma maneira os que consumiram apenas uma vez, os usuários e os dependentes de drogas. Ademais, o ET é procedimento excludente – já que o resultado positivo no exame implica na suspensão do direito de dirigir por 90 dias –, o que vai na contracorrente da proposta de reinserção social das políticas públicas sobre drogas, podendo implicar, inclusive, na demissão de motoristas.
Devemos considerar também que o uso de substâncias capazes de alterar o estado da consciência é hábito antigo e há séculos debatido nos campos das ciências humanas, jurídicas e da saúde. Há milhares de anos as sociedades humanas fazem uso de psicotrópicos para fins recreativos, religiosos e medicinais. Como a alteração no juízo crítico pode comprometer a saúde e a capacidade da pessoa de conviver pacificamente com os outros, as sociedades, através de códigos, disciplinam o uso destas substâncias, elegendo algumas como lícitas e outras como proibidas. A análise sobre o uso de drogas merece, portanto, um olhar multidisciplinar; nesta linha, a composição do Conselho Nacional Antidrogas – CONAD, conforme o Decreto nº 5.912/2006, a quem compete exercer orientação normativa sobre as atividades previstas para o SISNAD, contempla profissionais da área da medicina, psicologia, antropologia, direito, assistência social, enfermagem, educação e artes, entre outros. Parece, portanto, que se o ET fosse uma medida de combate ao uso de drogas, deveria passar pelo crivo do CONAD e ser especificado por resolução deste Conselho.
Então qual o fundamento para a exigência do ET?
Permanecem em aberto muitos questionamentos técnicos a respeito da exigência do ET para motoristas. Entretanto, uma afirmação é possível fazer, sem risco de errar: o ET custa caro e não possui relação cientificamente comprovada com a segurança no trânsito.
*Paulo Afonso Santos Analista – Psicólogo DETRAN/RS
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