por Paul H. Nobre de Vasconcelos Silva*
Como engenheiro de tráfego, aprendi que há certas limitações para os modais de transportes com relação à grande demanda de passageiros. Para isto, existem os trilhos. Obviamente, não estou me referido ao sistema central do Brasil e seu sucedâneo. Por outro lado, o transporte individual se torna o flagelo da mobilidade urbana e transforma os deslocamentos pendulares para suprir as necessidades de nossa existência, uma via crúcis diária. Transporte é a vida do povo. Para os que usam o transporte individual, esse sofrimento é amenizado com certo conforto pelo ar condicionado, música escolhida a gosto, bancos confortáveis, por isso é o sonho de consumo de quem usa o ônibus, que é a maioria da população, mas não impede o estresse e irritação tão prejudiciais à saúde e também os acidentes.
Em um dos capítulos de minha dissertação de mestrado, defendida há 23 anos, abordei o ônibus típico e sua operação, além da evolução do preço da tarifa que dilapida o salário do trabalhador. Infelizmente, a situação não mudou. Nestes dias em que utilizei o ônibus observei que, apesar do método de cobrança eletrônico, o quinto passageiro para ter acesso, o primeiro já deveria ter passado pela catraca. Uma longa fila continua a se formar, dependendo do horário, elevando o tempo necessário para o embarque. Isto aumenta o tempo de viagem e traz consequências até na determinação da frota. O sistema de transporte coletivo urbano por ônibus deve ser pensado prioritariamente para atender ao passageiro, sua razão de ser. Por que não se utilizar pisos mais baixos, portas mais largas, como previsto em vários estudos nos anos 80 para melhoria dos ônibus urbanos, com espaço para acumulação de pessoas antes da cobrança? Ou sistemas onde a cobrança é externa ao veículo? O sistema de informação sobre itinerários de linhas continua a inexistir. Tema que abordei em 1985 em um congresso da Associação Nacional de Transportes Públicos em Belo Horizonte. Essas e outras medidas certamente favoreceriam o passageiro que é obrigado a suportar todo o ônus do sistema. Decerto algo mudou, ruas com duas faixas exclusivas para ônibus, que nem sempre são respeitadas, faixas que mudam de sentido conforme o horário do sentido do fluxo de tráfego, um sistema BRT que tenho minhas dúvidas da sua eficiência. Talvez mais um suspiro concedido à tecnologia ônibus.
Certamente não deixarei de amar o Rio, mas me indigna o que o poder público está fazendo e deixou de fazer em tempo oportuno. Uma sociedade que necessita justificar seus investimentos de infraestrutura por ocasião de eventos “espetaculares” a meu ver está seriamente doente. Portanto, não é por acaso que surgem os movimentos populares que tiveram inicio com o protesto do aumento das tarifas de ônibus. A meu ver, esses protestos embutem uma insatisfação muito maior com o “poder” constituído. “Poder” que depois de eleito é imposto pela força policial por não satisfazer às expectativas de quem os elegeu. Vale a pena uma reflexão para além dos interesses econômicos que historicamente só trazem benefícios a uma pequena minoria já bastante privilegiada.
Como alternativa para uma possível saída dessa “caverna” na qual estamos metidos e a desvinculação da “automovelcracia” tão a gosto dos governos que têm isentado de impostos e concedido muitos privilégios que estimulam o uso dos automóveis, motocicletas e similares, sugiro uma outra lógica, outro modelo mental. A necessidade de compreensão da mobilidade urbana necessita imbuir-se de um conceito mais abrangente para a sua função básica estabelecendo os fluxos entre os fixos . Surpreende-me técnicos e gestores de transportes na insistência e maquiagem de modelos tradicionais que já comprovaram a sua obsolescência. Somente válidos como alternativas midiáticas. Portanto, acredito que são válidos os arquétipos da visão sistêmica, estudados por Peter Senge e explicitados na sua obra a Quinta disciplina, como caminho para se buscar outras alternativas para as questões de mobilidade. São alguns deles:
1) Os problemas de hoje vêm de soluções do passado, isto pode ser entendido como: a imobilidade urbana de hoje vem sendo conformada há muito pela escolha dos meios de transportes e modos de vida inadequados orientados apenas para o consumo e segundo um planejamento urbano regido pelo capital que expulsa para a periferia as classes sociais menos favorecidas ou as obriga à favelização;
2) Quanto mais você empurra, mais o sistema empurra de volta, no caso isso pode ser entendido como: quanto maior o esforço insistindo-se em aprimorar o tráfego, mantendo o statu quo, não nos apercebemos que contribuímos para que surjam novos obstáculos cada vez mais difíceis de resolver. As políticas públicas precisam ser coerentes;
3) O comportamento melhora antes de piorar. Na lógica sistêmica existe uma defasagem entre o benefício de curto prazo e o prejuízo a longo prazo e, na maioria das vezes, não nos damos conta disso. Por exemplo, a opção por viadutos ou elevados que em pouco tempo apenas transferem o congestionamento de lugar;
4) A saída mais fácil nos traz de volta para dentro, isto é: procuramos sempre a saída já conhecida e os problemas aumentam porque elas não são capazes de mudar a lógica necessária à resolução daqueles. Não seria o caso da insistência na tecnologia ônibus como solução para todas as demandas. Como os BRTs?
5) A cura pode ser pior que a doença. Este é o caso típico quando se usa melhorias incrementais de curto prazo não sistêmicas. O que resulta em ter que voltar a elas repetidamente sem solução e agravamento dos problemas. É o nosso dia a dia;
6) Mais rápido significa mais devagar. Na visão sistêmica uma outra lógica de pensar pode parecer inatividade, entretanto trata-se de uma forma mais desafiadora e promissora que os mecanismos usuais de lidar com problemas. Como sugestão, cito a obra – Pequeno tratado do decrescimento sereno de Serge Latouche;
7) Causa e efeito não estão próximos no tempo e espaço, trata-se do operador recursivo do pensamento complexo, isto é, na recursividade a causa produz um efeito que, por sua vez produz uma causa, contrariando a razão cartesiana de que uma causa A produz um efeito B. Os produtos e efeitos gerados por um processo recursivo são, ao mesmo tempo cocausadores desse processo e podem gerar ainda outros processos;
8) Pequenas mudanças podem criar grandes resultados. Na visão sistêmica se costuma dar importância a soluções menos óbvias. Isto é, pequenas ações bem focadas podem resultar em significativas melhoras desde que se atuando no local certo;
9) Dividir um elefante ao meio não produz dois elefantes, isto é: evitar a fragmentação, o todo não é a soma das partes, que podem ser simultaneamente opostas e complementares. A meu ver, é preciso ir além dos princípios Aristotélicos, identidade, terceiro excluído e não contradição. O mundo não obedece só a eles. Para além deles há a visão sistêmica e o pensamento complexo que podem ajudar à compreensão dos atuais problemas do nosso planeta. E, o acaso faz parte;
10) Não existem culpados, nós e nossos problemas fazemos parte de um único sistema. Todos somos vítimas e algozes.
É lamentável observarmos ainda que a imobilidade da qual é vítima a cidade do Rio de Janeiro, faça parte do dia a dia de muitas outras urbes brasileiras por questões que se assemelham. Se almejamos dias melhores, não podemos deixar que a lógica social e econômica que nos tem regido permaneça impune, se reproduzindo ad aeternum. Uma mudança estrutural, uma metamorfose no pensamento precisa ter início.
Glossário
“Automovelcracia” : Termo usado por Eduardo Galeano.
Os conceitos de “fluxos” e “fixos” são de Milton Santos. Fixos e fluxos combinam-se, caracterizando o modo de vida de cada formação social. Fluxos são homens, produtos, mercadorias, ordens, ideias, diversos em volumes, intensidade, ritmo, duração e sentido. Fixos são: casas de negócios, pontos de serviços, hospitais, centros de saúde, escolas, lugares de lazer, entre outros.
Paul H. Nobre de Vasconcelos Silva*, engenheiro, mestre em transportes, doutor em saúde pública.
paulnobre@hotmail.com
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