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Fantasmas, cambalhotas e alguma malícia no Dia de Finados

por Eduardo Biavati*

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Véspera de Finados é sempre um bom momento para falar de trânsito: é feriado nacional, muita gente na estrada, e mal teremos terminado de orar pelos mortos quando soubermos que outros tantos ficaram pelo caminho. O Dia de Finados no Brasil é cada vez mais um dia dos mortos no trânsito.
Não é preciso muita criatividade jornalística para juntar os assuntos. É o que fizeram o jornal O Globo, na edição de primeiro de novembro de 2009 e, agora, a revista Veja, na edição do dia 2 de novembro de 2011, divulgando que atingimos o recorde histórico de mortos no trânsito em 2010 – 40.600 mortos, 111 por dia, 1 a cada 13 minutos!
Como chegamos a esse ponto?! Por que tanta violência? Quem dera pudessemos desvendar essa marca complexa de nossa sociabilidade e apontar firme para uma causa de tanta desgraça! Nada mais simples, para a Veja: é porque nós, brasileiros, bebemos e dirigimos veículos na maior cara-de-pau, como sempre fizemos, donde se conclui que a lei seca, em vigor desde 2008, não apenas foi inútil como instrumento de repressão de nossas irresponsabilidades no trânsito, como piorou as coisas desde então.
A Veja de Finados não tem dúvida, como não teve O Globo anos atrás, de que o mundo era muito melhor antes dessa lei que, de tão rigorosa, se tornou inaplicável porque os bêbados tupiniquins, sempre bem espertos, especialmente os que pagam advogados e doutores de plantão, consagraram o sambinha da malandragem cidadã: “ninguém pode ser obrigado a produzir prova contra si mesmo“. Na capital da República, terra de cidadãos exemplares e de defensores aguerridos dos direitos civis, 8 em cada 10 pessoas paradas em blitzes e que apresentaram algum sinal de embriaguez não assopram o bafômetro e se recusam a fazer qualquer outro exame para atestar o grau de alcoolemia. A lei que deveria impedir a bebedeira motorizada se transformou, assim, na interpretação da Veja, em salvo conduto para o pé-na-jaca, engordando tragicamente as estatísticas das mortes no trânsito.
A cambalhota ideológica da Veja mal disfarça, porém, a pobreza de sua simplificação do mundo. Quase metade das vitimas do transito estava alcoolizada quando perdeu suas vida em 2010, é verdade, mas o que a Lei Seca tem a ver com isso? 
Diante de Camaros, Porsches e Land Rovers e seus motoristas enlouquecidos, é conveniente esquecer que os pedestres ainda formam o principal contigente de mortos na ruas e é claro que nenhum deles e nenhum dos passageiros de motocicletas, carros, ônibus ou caminhões que tenha morrido alcoolizado seria salvo pela Lei. Digamos, então, que sobrem 20 ou 30% do total de mortos alcoolizados que eram condutores – mais ou menos 5.000 pessoas em 2010 – esses, sim, não deveriam ter seguido viagem se a aplicação da Lei pelos agentes de fiscalização fosse absoluta, integral e onipresente no território nacional.
O problema é que, para frustração de muitos, não vivemos em um Estado Policial. Amplas áreas urbanas e cidades inteiras estão fora das garras da “Lei seca“ – e assim será, se houver estratégia e alguma inteligência. Muita gente continuará bebendo e dirigindo nas cidades e nas rodovias e, infelizmente, continuarão acontecendo graves acidentes e mortes embalados, ou não, pelo álcool, como acontece nos Estados Unidos da América, na Inglaterra ou na Austrália, apesar do invejável poder de fiscalização e de campanhas públicas primorosas.
O mundo não ficou pior por causa da Lei Seca, como afirma a Veja, além do mais, porque o álcool é um apenas um fator CONTRIBUINTE das mortes e lesões no trânsito. Isso é tudo o que sabemos objetivamente. Trata-se de um contribuinte importante, sempre no topo da lista do mal, mas apenas um dentre muitos outros. Raramente alguém pode afirmar que o álcool CAUSOU um dado acidente. É por isso que se diz, quando há honestidade intelectual, que o álcool está ASSOCIADO ao acidente, ou que ele está ENVOLVIDO (no meio de muitas outras coisas) no acidente. Apenas como uma inferência indireta, forçando bem a barra, podemos dizer que aquela pessoa “morreu porque bebeu”.

Vale repetir: beber e NÃO dirigir é uma atitude de segurança muito importante, mas insuficiente para garantir a integridade e a vida da pessoa no trânsito. Ninguém morre “de álcool“ no trânsito. O que mata as pessoas é a VELOCIDADE. Você morre porque estava solto no carro, sem cinto de segurança, boiando no banco traseiro, bêbado ou sóbrio, ou porque meteu um capacete na cabeça e sequer o prendeu abaixo do queixo, e esse veículo colidiu contra um obstáculo qualquer em velocidade.
Escapa ao jornalismo da Veja, como faltou ao do O Globo anos atrás, a capacidade, portanto, de investigar e reportar a realidade tal como ela é: COMPLEXA. Ambos poderiam focar, por exemplo, o movimento maciço de expansão da produção e do comércio das bebidas alcóolicas no Brasil – uma pista: o consumo de vodka aumentou quase 9% nos últimos 12 meses, promete ainda mais nos anos seguintes e um importante fabricante global dedicará uma campanha especial para o Brasil para anunciar a marca como “catalizadora de potenciais critativos“ da galera… Ou poderiam questionar a que público-alvo se destina o expressivo investimento das montadoras de veículos globais que abrirão 9 novas fábricas no Brasil até 2014. Se tudo isso não confrontasse em demasia os patrocinadores (10% das páginas da última edição de Veja anunciam novidades da indústria automobilística, e duas páginas são dedicadas ao triunfo comercial da Volkswagen), ganharíamos outros elementos para compreender que a Lei Seca não é, nunca foi e nunca será um     passe mágico para a segurança no trânsito.
O que se percebe mais uma vez é que a conclusão do fracasso da Lei Seca já está pronta ANTES dos fatos e deriva, como escrevi anteriormente (Mas, entretanto, todavia… O primeiro ano da “Lei Seca“), de uma linha de pensamento que rebaixa ou simplesmente expurga os ganhos, ao mesmo tempo em que amplifica a insuficiência e até a ilegitimidade da lei. É um pensamento que nada acrescenta ao aperfeiçoamento das instituições ou da legislação, mas enche algumas páginas, oferece uma explicação simples do mundo, sacode alguns fantasmas e, ao cabo, conforta um bom grupo de leitores, justamente aqueles que se recusam a soprar bafômetros. Nenhuma novidade nisso: ao cabo, é apenas mais um produto à venda na prateleira de uma banca de jornal.

 

*Eduardo Biavati é mestre em sociologia (UnB) e especialista em segurança no trânsito. É membro titular da Câmara Temática de Educação e Cidadania do Conselho Nacional de Trânsito (CONTRAN), para o biênio 2010-2011. De 1993 a 2004, foi Coordenador Nacional do Programa de Prevenção de Acidentes de Trânsito da Rede SARAH de Hospitais de Reabilitação. 

Originalmente publicado no Blog do Biavatti, no dia 02/11/2011.

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