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Acidente ou Acidente?

por Archimedes Azevedo Raia Jr.*

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“Acidente” é a palavra comumente aceita, no Brasil e em vários países, para se denominar uma ocorrência envolvendo um ou mais veículos de transporte em uma colisão, que resulta em danos materiais, ferimentos ou morte. O termo “acidente”, na acepção da palavra, implica em um evento aleatório que ocorre sem nenhuma razão aparente que não seja o “simplesmente aconteceu”.
Quem já não esteve envolvido em situações em que algo ocorreu e que fora de maneira não intencional, como a queda do copo de refrigerante na camisa de um interlocutor, por exemplo? A reação imediata da pessoa poderia ter sido “desculpe, foi apenas um acidente”.
A definição de acidente, segundo o Dicionário Aulete, é “acontecimento imprevisto, inesperado”, “acontecimento infeliz, desastroso, que pode causar danos, ferimentos, e até a morte”. Portanto, está claro que o acidente é algo absolutamente imprevisto, aleatório, inesperado.
Na língua americana tanto a palavra “crash” quanto o termo “accident” tem sido usadas para denominar o mesmo fato, ou seja, uma batida ou trombada, um acidente de trânsito.
A palavra “crash” não é uma terminologia universalmente aceita em todos os modos de transporte; ela é mais comum no contexto do transporte rodoviário e de ocorrências de trânsito. A tradução dos termos para o português tem sido a mesma: acidente.
A Agência Nacional de Segurança de Tráfego Rodoviário (National Highway Traffic Safety Administration), ligada ao Departamento de Transportes americano, propôs a substituição da palavra “accident” pela palavra “crash”. A adoção da palavra “crash” teria o significado de que a colisão poderia ter sido evitada ou seu efeito minimizado ou modificado pelo comportamento do condutor, pelo projeto do veículo (chamado de “resistência ao choque”), pela geometria viária ou pelo ambiente viário.
A ocorrência de um acidente de trânsito, em geral, representa um desafio para os peritos em segurança viária. Em todos os casos, surge a questão: “Que sequência de eventos ou circunstâncias contribuiu para a ocorrência do incidente que resultou em lesão, perda de vidas ou danos à propriedade?”.
Em alguns casos, a resposta poderia ser simples. Por exemplo, a causa de um único carro acidentado poderia ser pelo fato que o motorista adormeceu ao volante, atravessou o acostamento, e bateu em uma árvore.
Em outras situações, a resposta poderia ser bem mais complexa, envolvendo muitos fatores que, agindo em conjunto, causaram o acidente.
Um exemplo conhecido, fora do setor rodoviário, pode tornar esta questão mais clara. O acidente envolvendo o Boeing 737 do voo 1907, da Gol, e o EMB Legacy, da ExcelAir, pode ter parecido uma absoluta fatalidade, já que a probabilidade de dois aviões se chocarem no ar, em trecho de cruzeiro, é ínfima. No dia 29 de setembro de 2006, em sua viagem inaugural, entre São José dos Campos e Manaus, O EMB Legacy chocou-se com Boeing, no nos céus de Mato Grosso. O jato da Gol caiu matando 154 pessoas.
A crença comum é que a causa dessa tragédia foi uma fatalidade, ainda mais pelo fato de que o choque de um avião pequeno, que teve apenas parte do seu winglet danificado, derrubou um Boeing enorme.
No entanto, o motivo real é muito mais complexo e envolveu muitos fatores. Dentre estes fatores associados ao Legacy, pode-se citar: o transponder estava desligado no momento da colisão, os pilotos eram inexperientes neste tipo de jato e na rota; o plano de voo estava errado, os controladores foram omissos, os controladores não conheciam bem a linguagem corrente para comunicação na língua inglesa, os pilotos estavam mais preocupados com a aterrissagem em Manaus do que com a viagem em si, etc.
Com base neste exemplo, é possível construir uma lista abrangente de categorias de circunstâncias que poderiam influenciar a ocorrência de acidentes de transporte. Se os fatores que contribuíram para a ocorrência de colisão são identificados, é possível, então, modificar e aperfeiçoar o sistema de transporte e trânsito.
Quer-se deixar claro que o evento envolvendo as duas aeronaves não foi um acidente (accident) e sim um acidente (crash).
Entender que a ocorrência desses fatos lamentáveis, principalmente no Brasil, é fundamental. Isto é necessário para que não se trate eventos que ocorrem diariamente no território nacional com uma visão fatalista e sim como algo previsível, na medida em que uma série de ações obrigatórias, necessárias para que o transporte seja feito com segurança, sejam desrespeitadas.
No futuro, com a mitigação ou eliminação dos fatores causadores de acidentes (crashes), é provável que venha a resultar em sistemas de transporte e trânsito mais seguros.
Ainda que as causas dos acidentes sejam, em geral, complexas e envolvem vários fatores, a literatura especializada em segurança de trânsito, as classifica em quatro categorias distintas: ações por parte do motorista ou condutor, condição mecânica do veículo, características geométricas da rodovia, e do ambiente físico ou climático em que o veículo opera.
A partir destas considerações, fica claro que, na verdade, os acidentes, na maioria dos casos, não são acidentes (accidents) e sim acidentes (crashes). Pode parecer uma questão puramente semântica, porém, se justifica pelo fato de o brasileiro ter a ideia de que os acidentes são “fatalidade”, “destino”, “sina”, “tinha que acontecer”, etc.
É preciso incutir na mente dos brasileiros, responsáveis por aquelas quatro categorias de fatores, de que se o motorista/condutor não cumpre rigorosamente as leis de trânsito, a consequência espera é o acidente. Se os veículos não são conservados de maneira adequada ou seus projetos são falhos, pode-se prever que o acidente venha a ocorrer.
Por outro lado, se o engenheiro não fizer um projeto geométrico da via de maneira adequada, se o órgão gestor não fizer a manutenção da via e sua sinalização periodicamente, o resultado será acidente.
Nascida na Suécia, em 1997, a filosofia Visão Zero não aceita que pessoas percam a vida ou fiquem seriamente lesionadas em acidentes de trânsito. Hoje, ela está disseminada por um número grande de países, e imputa aos diversos atores do sistema de trânsito as devidas responsabilidades pela ocorrência dos acidentes.
De maneira análoga, poder-se-ia responsabilizar e punir, os motoristas/condutores e pedestres pelos seus comportamentos inadequados, os gestores de trânsito (prefeituras, DERs, DNIT, etc.) pela falta de manutenção das vias e sinalização, os projetistas pelas falhas de projetos, os políticos pela legislação branda ou ineficiente, etc.
Em suma, se a Visão Zero já estivesse implantada no Brasil, todos estes atores citados acima, mais diretamente envolvidos nas causas dos acidentes, e tantos outros envolvidos de maneira menos direta, seriam judicialmente responsabilizados e punidos pelas mais de 42 mil mortes ocorridas anualmente no país. Estas mortes não são fatalidade; são frutos de comportamentos desidiosos dos diversos atores do sistema de trânsito brasileiro.

 

*Prof. Dr. Archimedes Azevedo Raia Jr.
Engenheiro, mestre e doutor em Engenharia de Transportes pela USP, professor, coordenador do Núcleo de Estudos em Engenharia e Segurança de Tráfego Sustentável da UFSCar. Presidente da Comissão Permanente de Segurança de Trânsito da UFSCar. Coautor do livro “Segurança no Trânsito”, Ed. São Francisco. E-mail: raiajr@ufscar.br.

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