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O que há de comum entre a tragédia de Santa Maria e o trânsito?

por Archimedes A. Raia Jr.*

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Os últimos números divulgados pela imprensa dão conta que o incêndio na boate Kiss, envolvendo muitos estudantes da Universidade Federal de Santa Maria, vitimou mais de 300 pessoas, sendo 238 fatais e 81 que se encontram ainda internadas.

O fato, como não poderia deixar de ser, provocou comoção geral. A mídia alardeou o tema com destaque. Vejamos algumas manchetes publicadas na mídia mundial: “Políticos se solidarizam com tragédia em Santa Maria” (RBS); “Tragédia histórica” (Zero Hora); “Tragédia em boate de Santa Maria é ‘terceira mais fatal da história’” (BBC), “Al menos 233 muertos en una discoteca de Brasil que no tenía licencia” (El País); “A scene of horror at Brazilian nightclub” (NY Times); “Hundreds killed in Brazil nightclub fire” (Al Jazeera); “Brazil nightclub fire kills 232” (Wall Street Journal); “Tragedia en Brasil: 233 muertos por un incendio” (Clarín) e tantas outras mais.

O Brasil registrou recentemente outras calamidades com grande repercussão. As quedas do avião Airbus da TAM, que fazia a rota Porto Alegre a Congonhas, resultou em 199 mortos, em 2007 e, a aeronave da Air France, da rota Rio de Janeiro a Paris, em 2009, provocou 228 vítimas fatais.

Há que se falar também nas tragédias no Rio de Janeiro. Destaque seja dado às enchentes e deslizamentos de terra que atingiram o estado, em janeiro de 2011. As cidades mais afetadas foram Teresópolis, Nova Friburgo, Petrópolis, Sumidouro e São José do Vale do Rio Preto, na Região Serrana do estado. Os serviços governamentais contabilizaram 916 mortes e em torno de 345 desaparecidos.

O caso de Santa Maria ecoou de maneira comovente em todo o país e fora dele. Em muitas cidades brasileiras está ocorrendo uma verdadeira reengenharia de segurança, não só em casas noturnas como em outros prédios públicos. Projetos construtivos civis, eletroeletrônicos, de som e acústica, de segurança em geral, estão sendo debatidos e soluções concretas e radicais estão sendo implementadas. Setores de fiscalização das prefeituras, homens do Corpo de Bombeiros, engenheiros do CREA, Ministério Público, etc. estão trabalhando ativamente. Que bom que todos estão preocupados e acompanhando atentamente o desenrolar dos fatos! Tomara que toda esta manifestação não esmaeça em poucas semanas, fato este tão comum em casos deste tipo no Brasil.

Existe, no entanto, outra tragédia, transcorrendo de maneira furtiva e permanente, a cada dia, mês e ano, no Brasil. Poucos a percebem como acontecimento funesto, a não ser os mais diretamente envolvidos. São os acidentes de trânsito, que além de vítimas jovens (como as de Santa Maria), atingem também as crianças, adultos e idosos.

Em 2010, morreram 41 mil pessoas no trânsito brasileiro, o que equivale a 172 vezes a tragédia de Santa Maria, 206 vezes ao desastre de Congonhas e 180 vezes a queda do avião da Air France e quase 45 vezes maior que a tragédia carioca. Do total de mortos em 2010 no trânsito, 5.500 (13,4%) estavam na faixa de 1 a 19 anos. Este dado corresponde a uma quantidade de mortos 23 vezes maior que a registrada no caso Kiss. Este valor corresponde, ainda, a 7,2% dos óbitos por causas externas de crianças e adolescentes na faixa de 1 e 19 anos.

Em 2000, a taxa de óbitos em acidentes de transporte, que era de 21 para grupos de 100 mil crianças e adolescentes; em 2010, atingiu a 36 (mais de 70%). Mas, ninguém se importa. A imprensa não dá destaque em suas manchetes. Os municípios não decretam luto oficial, a presidente da república, os governadores e os prefeitos não vão aos locais dos acidentes.

O pior de tudo isto, no entanto, é que pouco se faz, em termos de mudança de paradigmas. 25% da frota brasileira tem documentação irregular e não recebe inspeção veicular, as pistas são “verdadeiras espumas de colchões”, ávidas em provocar os “incêndios viários”.

Segundo Pesquisa CNT de Rodovias 2012, cerca de dois terços das rodovias pavimentadas do Brasil estão em situação regular, ruim ou péssima. Dos mais de 95 mil quilômetros avaliados, 33,4% foram considerados em situação regular, 20,3%, ruim e 9%, péssima. Apenas 37,3% estão em bom estado e ótimo.

O número de motoristas alcoolizados continua alto e homicida. O respeito às leis de trânsito é pequena. O abuso é total. Mas, a sociedade, os gestores e políticos parecem não se importar muito com estes fatos, ao menos na intensidade que o fato requer. Os políticos não se “solidarizam com as famílias”.

O Brasil é, infelizmente, uma nação de pessoas indolentes, passivas, apáticas, amodorradas, com perfil mandrião. Em outros países, até menos desenvolvidos que o Brasil, há constantes mobilizações e cobranças por razão tão menos importante. Nossos irmãos estão morrendo na tragédia cotidiana do trânsito brasileiro e ninguém se sensibiliza. Os motociclistas estão vivendo em uma verdadeira guerra sangrenta, perdendo a vida ou ficando mutilados e, ainda assim, acham que não precisamos de medidas rigorosas, como as que têm sido aprovadas pelo CONTRAN para aumentar a segurança do modal. Fazem greves e passeatas para manterem a periculosidade absurda hoje vivenciada.

Tudo isto me lembra a Nélson Rodrigues, em seu livro “A menina sem estrelas”, quando afirma: “O que me põe doente é a falta de espanto. (…) O que nos falta é o que chamaria de ‘espanto político’. Aqui, as coisas espantosas deixaram de espantar. (…) Preciso me espantar com a maior urgência.”

*Prof. Dr. Archimedes A. Raia Jr.
E engenheiro, mestre e doutor em Engenharia de Transportes, professor da UFSCar e Diretor de Engenharia da Assenag. Coautor dos livros Segurança no Trânsito (Ed. São Francisco, 2008) e Segurança Viária (Ed. Suprema, 2012). E-mail: raiajr@ufscar.br.

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